Jurisprudência - STJ

ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO ESTADO.

Por: Equipe Petições

Facebook icon
e-mail icon
WhatsApp

ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO ESTADO. LEVANTAMENTO DE NUMERÁRIO DEPOSITADO EM CONTA JUDICIAL. ERRO NO PREENCHIMENTO DA GUIA. INDICAÇÃO DE CONTA NÃO PERTENCENTE À PESSOA BENEFICIÁRIA. DANO MATERIAL. NEXO DE CAUSALIDADE CONFIGURADO. DEVER DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS RECONHECIDO. DANO MORAL NÃO CARACTERIZADO.

1. É objetiva a responsabilidade civil do Estado pelos danos causados por seus agentes no exercício da função pública, cabendo ao prejudicado, unicamente, comprovar o nexo de causalidade entre a conduta do agente estatal e o dano suportado, sem a necessidade de demonstrar a existência de culpa.

2. Caso em que ficou demonstrado o nexo de causalidade entre a conduta do agente estatal, consistente no erro na expedição de alvará de levantamento de depósito judicial, e os danos materiais alegados pelo recorrente, que teve numerário a ele pertencente levantado por pessoa não autorizada.

3. A ausência de má-fé não é causa excludente da responsabilidade da Administração por ato de seus agentes. A culpa ou má-fé constitui, apenas, pressuposto para a responsabilização do servidor, em eventual ação de regresso, pela indenização que o ente estatal tiver que suportar por força de decisão judicial, sem, no entanto, livrá-lo do dever de reparar o dano suportado pela vítima.

4. Em se tratando de levantamento de numerário depositado em conta judicial, redobrado cuidado se impõe ao agente que detém a atribuição de elaborar as autorizações pertinentes, pois qualquer equívoco pode redundar em prejuízo aos titulares dos valores confiados à guarda judicial, a exemplo do ocorrido no caso em comento.

5. Quanto à reivindicada reparação por dano moral, não logrou a parte autora demonstrar sua ocorrência, que, na espécie, não se presume.

6. Recurso especial do particular parcialmente provido.

(REsp 1038259/SP, Rel. Ministro SÉRGIO KUKINA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 08/02/2018, DJe 22/02/2018)

 

Facebook icon
e-mail icon
WhatsApp

JURISPRUDÊNCIA NA ÍNTEGRA

RECURSO ESPECIAL Nº 1.038.259 - SP (2008⁄0053202-5)
RELATOR : MINISTRO SÉRGIO KUKINA
RECORRENTE : KYRIL GALVAO BUENO SRESNEWSKY
ADVOGADO : MARCELO BERNARDEZ FERNANDEZ E OUTRO(S)
RECORRIDO : FAZENDA DO ESTADO DE SÃO PAULO
 
RELATÓRIO
 

O EXMO. SR. MINISTRO SÉRGIO KUKINA (Relator): Trata-se de recurso especial manejado por Kyril Galvão Bueno Sresnewsky, com fundamento no art. 105, III, a, da CF, contra acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, assim ementado (fl. 254):

 
RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. INDEVIDO LEVANTAMENTO DE DINHEIRO DE CONTA JUDICIAL EM VIRTUDE DE GUIA EQUIVOCADA. ERRO ESCUSÁVEL DIANTE DA SINONIMIA DOS NOMES DO INVENTARIANTE E DO HERDEIRO. IRMÃO LESADO. AUSÊNCIA DE MÁ-FÉ POR PARTE DO ESTADO. RECURSOS OFICIAL E VOLUNTÁRIO DA FAZENDA PROVIDOS PARA RECONHECER A IMPROCEDÊNCIA DA AÇÃO.
Embora a responsabilidade civil do Estado seja objetiva, isso não significa que ele responda sempre e por qualquer prejuízo. Ausente dolo, má-fé ou outro vício e sendo o equívoco formal plenamente escusável, seria injusto fazer o povo indenizar aquele que foi prejudicado com a inegável participação de seu próprio irmão, que levantou dinheiro indevido valendo-se de guia expedida pela serventia.

 

Opostos embargos declaratórios, foram rejeitados ante a inexistência dos vícios elencados no art. 535 do CPC⁄73 (fls. 269⁄272).

Inconformada, a parte recorrente afirma que o dano em questão foi provocado por serventuário da 7ª Vara de Família e Sucessões do Foro Central de São Paulo que, ao expedir guia de levantamento de valores depositados judicialmente, acrescentou indevidamente sub-conta de sua titularidade, causando-lhe substancial prejuízo material.

Segundo defende, em hipóteses como a que se apresenta, a responsabilidade civil do Estado é objetiva, bastando a demonstração da causalidade para gerar o dever de indenizar os danos materiais causados pelo agente público. Aponta como violados os arts. 43 do CC⁄16 e 927 do CC⁄2002.

Aduz, ainda, ser inafastável a ocorrência de dano moral, considerando que, diante da disponibilização a terceiro, pelo Poder Judiciário, de valores que lhe eram devidos, o recorrente não pôde se submeter a uma cirurgia de transplante de rim.

Por fim, requer que os juros de mora incidam na base de 1% ao mês, conforme os arts. 406 do CC⁄2002 e 161 do CTN, bem assim que a correção monetária seja calculada com base nos índices da caderneta de poupança.

Em contrarrazões, o recorrido aponta a ausência de prequestionamento dos dispositivos alegadamente violados e aduz que a insurgência busca a análise de fatos e de provas (fls. 309⁄315).

O Ministério Público Federal opinou pelo não conhecimento do recurso especial, em parecer assim sumariado (fl. 367):

CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. INVENTÁRIO. DEPÓSITO JUDICIAL. HERDEIROS. LEVANTAMENTO DE QUANTIA PELO IRMÃO DO AUTOR. ALTERAÇÃO DO JULGAMENTO. NECESSIDADE DO REEXAME DE PROVAS. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA 7 DO STJ. 1 – O Tribunal “a quo” concluiu que não houve atuação do Estado suficiente a gerar prejuízo ao recorrido, por se tratar de erro de pequena monta e escusável. Assim, para se afastar esse fundamento do acórdão recorrido, seria necessário o revolvimento do conjunto fático probatório dos autos, o que encontra óbice na súmula 7⁄STJ, que dispõe: “A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial”. 2 – Parecer pelo não conhecimento do recurso especial.
 

É o relatório.

 
RECURSO ESPECIAL Nº 1.038.259 - SP (2008⁄0053202-5)
 
VOTO
 

O EXMO. SR. MINISTRO SÉRGIO KUKINA (Relator): Registre-se, de logo, que o acórdão recorrido foi publicado na vigência do CPC⁄73; por isso, no exame dos pressupostos de admissibilidade do recurso, será observada a diretriz contida no Enunciado Administrativo n. 2⁄STJ, aprovado pelo Plenário do STJ na Sessão de 9 de março de 2016 (Aos recursos interpostos com fundamento no CPC⁄73 (relativos a decisões publicadas até 17 de março de 2016) devem ser exigidos os requisitos de admissibilidade na forma nele prevista, com as interpretações dadas, até então, pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça).

Feita essa observação, passo ao exame do recurso especial, desde já ressaltando que, após análise da matéria, tenho que o presente apelo merece parcial acolhimento.

O tema em debate consiste na aferição de responsabilidade civil do Estado de São Paulo quanto aos danos materiais e morais causados em razão de erro na expedição de guia de levantamento de numerário vinculado ao juízo, o que acarretou na entrega da soma a pessoa diversa. 

Narram os autos que, em virtude de determinação testamentária, foram criadas duas sub-contas bancárias vinculadas, cujo saque estava condicionado ao implemento etário dos herdeiros Igor Galvão Bueno Sresnewsky e Kyril Galvão Bueno Sresnewsky, que só poderiam tomar posse dos valores após completarem 45 e 55 anos, respectivamente. Entretanto, no momento em que Igor Galvão foi sacar o valor depositado em sua conta (641.953-2), o mandado de levantamento judicial, por equívoco, acrescentou a quantia depositada na conta 641.945-4, em nome do irmão Kyril (autor⁄recorrente).

Em razão do levantamento ter ocorrido por terceiro não investido de poderes para representá-lo, o herdeiro Kyril pretende, na presente ação ordinária, a reparação do dano material sofrido, bem como aduz a existência de dano moral indenizável.

O Tribunal de origem, ao reformar a sentença de primeiro grau e julgar improcedente o pedido inicial, assim se manifestou (fls. 257-258):

 

Já em relação ao mérito, a razão está com a FAZENDA DO ESTADO.
De um equívoco na elaboração de uma carta de guia não pode resultar a condenação do Erário, pois existem, nestes autos, circunstâncias que afastam a responsabilidade civil do Estado.
O inventariante era IGOR SRESNEWSKY e o herdeiro que levantou o que não lhe pertencia era IGOR GALVÃO BUENO SRESNEWSKY. O filho tem o mesmo nome paterno, salvo a inclusão do patronímico materno.
A rigor, não houve erro grosseiro na expedição da guia de levantamento. O nome do inventariante e do herdeiro era praticamente o mesmo. Ausente qualquer má-fé da serventia, injusto obrigar-se a FAZENDA PÚBLICA a indenizar alguém que, se foi vítima da má-fé, não pode atribuí-la ao Estado. Perceber quantia muito superior à que merecia foi ato apenas atribuível ao próprio irmão do autor.
Ou seja: houve levantamento de dinheiro que pertencia a vários herdeiros, por parte de um só deles. A identidade dos nomes - inventariante e herdeiro - torna compreensível a expedição de guia propiciadora do levantamento total. Mas evidente a ausência de dolo, de má-fé, de artifício ou qualquer outra mácula que se pudesse imputar ao Estado.
Se os ordenamentos contemporâneos dilatam a responsabilidade civil do Estado, convertendo-a muita vez em circunstância objetiva, torna-se irrito ao senso de Justiça fazer com que o povo suporte um dispêndio que gerou enriquecimento ilícito de um irmão do prejudicado.
A questão é de ser resolvida no âmbito familiar. Da pequeníssima falha formal consistente na expedição de uma guia de levantamento em nome comum ao inventariante e ao herdeiro, não se há de extrair a responsabilidade do Estado para entregar outra vez a quantia já percebida por alguém da mesma família.
O aspecto moral da presente demanda evidencia que o tema conduziria a intolerável enriquecimento ilícito. Enriquecimento sem causa, gerado por um equívoco formal de pequena monta, sobre o qual o beneficiado deveria ter sido alertado à época, de parte dos demais interessados, seus próprios irmãos.
Não há causa tributável ao Poder Judiciário para onerar o povo com a indenização pretendida pelo autor, que deverá se voltar contra seu irmão, o beneficiado com o levantamento.
O nexo causal existe, mas é insuficiente a gerar os efeitos pretendidos pelo autor. Não houve uma atuação do Estado que gerasse uma perda irreparável, exclusivamente por força desse erro. A incorreção parcial da guia de levantamento seria, no máximo, uma concausa. Não causa suficiente para ocasionar ao autor o alegado prejuízo.
 

Nesse contexto, diante da moldura fática esboçada no acórdão recorrido, tem-se por inequívocos os seguintes fatos: (I) os valores depositados somente estariam disponíveis ao herdeiro Kyril Galvão Bueno Sresnewsky quando completasse 55 anos de idade, o que ocorreria somente em 2004; (II) houve o levantamento desses valores em 1º⁄2⁄94, ou seja, antes de implementado o requisito etário do titular da conta, conforme previsto em testamento; e (III) a pessoa que efetuou o saque (Igor Galvão Bueno Sresnewsky) assim o fez mediante mandado de levantamento judicial expedido em seu nome pelo Cartório da 7ª Vara de Família e das Sucessões do Foro Central de São Paulo.

Diante de tal cenário, cumpre definir se, no caso concreto, após demonstrado o erro cometido por agente público na emissão das guias de levantamento, existe responsabilidade civil do Estado em reparar os danos sofridos pelo herdeiro prejudicado.

É cediço que o sistema normativo brasileiro consagrou como objetiva a responsabilidade civil do Estado, que se baseia no risco administrativo. Portanto, a indenização pleiteada depende da demonstração da existência de dano decorrente da ação ou omissão da Administração, bem como da presença de nexo causal entre a conduta praticada pelo agente público e o dano experimentado pelo particular.

Sobre a responsabilidade objetiva da Administração pelos danos decorrentes da atividade judiciária, quando verificada a falha do serviço, calha reproduzir a lição de SÉRGIO CAVALIERI FILHO:

(...) Por seu turno, o serviço judiciário defeituoso, mal-organizado, sem os instrumentos materiais e humanos adequados, pode, igualmente, tornar inútil a prestação jurisdicional e acarretar graves prejuízos aos jurisdicionados pela excessiva morosidade na tramitação do processo. Os bens das partes se deterioram, o devedor desaparece, o patrimônio do litigante se esvai etc.
(Programa de Responsabilidade Civil. 11 ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 326)
 
 

Retornando ao caso em exame, não há como afastar o nexo de causalidade entre a conduta do agente estatal, consistente no erro na expedição de alvará de levantamento de depósito judicial, e os danos materiais sofridos pelo recorrente, que teve numerário a ele pertencente levantado por terceiro não autorizado.

Por outro vértice, a ausência de má-fé do Estado, fundamento adotado pela Corte de Justiça local para afastar a responsabilidade civil, não se traduz em circunstância capaz de excluir a responsabilidade da Administração por ato de seus agentes. A culpa e a má-fé constituem pressupostos apenas para a responsabilização do servidor em caso de ação de regresso movida pelo ente público, visando reaver os valores que este último tenha desembolsado para indenizar a vítima por força de decisão judicial. Não assim para eximir o ente público do dever de reparar o dano suportado pelo particular.

Também não se mostra razoável escusar o Estado pelo erro cometido, somente em face da semelhança entre o nome dos irmãos envolvidos. Em se tratando de levantamento de numerário depositado em conta judicial, redobrado deve ser o cuidado daqueles que detém a atribuição de confeccionar as autorizações pertinentes, pois qualquer equívoco pode redundar em prejuízo dos titulares dos valores confiados à guarda judicial, tal como ocorrido no caso em comento.

De outro giro, inadequado se apresenta o fundamento esposado no acórdão recorrido, sobre ser "írrito ao senso de Justiça fazer com que o povo suporte um dispêndio que gerou enriquecimento ilícito de um irmão do prejudicado" (fl. 257). De fato, tendo havido enriquecimento ilícito de outrem às custas de uma falha do Estado, cabe a este buscar os meios adequados para se ressarcir do eventual prejuízo que suportou, não podendo, contudo, eximir-se de ressarcir ao terceiro prejudicado, ainda que presente vínculo parental entre este e o sujeito indevidamente beneficiado pelo equívoco estatal. Consequentemente, inadmissível a solução preconizada pelo Tribunal de origem, no sentido de que "A questão é de ser resolvida no âmbito familiar" (fl. 257).

Dessa forma, sendo inequívoco o nexo de causalidade entre a conduta praticada pelo agente no exercício atividade pública e o prejuízo sofrido pelo recorrente, inafastável se faz a condenação do Estado à reparação material pretendida pela parte autora.

Já quanto à solicitada reparação de dano moral decorrente do mesmo episódio, não prospera o pleito. A tanto, aduz o recorrente seu cabimento porque o saque indevido dos valores depositados judicialmente impediu-lhe de custear um transplante de rim necessitado por sua esposa.

Sem embargo da gravidade do lamentado evento clínico, certo é que a aflição dele decorrente não pode ser debitada ou tida como desdobramento derivado do equivocado alvará de levantamento de valor que originou a presente lide. Por outro viés, com o respeito devido, não se pode ver no confessado "desgosto e tristeza do autor" (fl. 20), que à época dos fatos residia fora do país, contexto capaz de respaldar a almejada compensação moral. Demais disso, como assinalado pelo douto juiz sentenciante, na espécie, "o dissabor pelo prejuízo financeiro é compensado pela satisfação do ressarcimento" (fl. 177). Frise-se que, na espécie examinada, o dano moral não se presume, deixando o autor de se desincumbir da demonstração de sua alegada ocorrência.

Assim, é devida a recomposição do valor do depósito judicial levantado indevidamente, que deverá ser acrescido de juros de mora, inicialmente no percentual de 6% ao ano (art. 1.062 do CC⁄1916) e, após a entrada em vigor do Código Civil de 2002, no importe de 1% ao mês (art. 406), observado o termo inicial disposto na Súmula 54⁄STJ.

Quanto à correção monetária, essa também terá como termo inicial a data do encerramento da subconta pertencente ao autor (01⁄02⁄1994), observado o IPCA.

Mantém-se o regime sucumbencial estabelecido na sentença (fl. 178).

Ante o exposto, dá-se parcial provimento ao recurso especial, a fim de condenar a Fazenda do Estado de São Paulo ao pagamento dos danos materiais sofridos pela parte autora, mais consectários, nos termos da fundamentação.

É o voto