Jurisprudência - STJ

CIVIL. AÇÃO ORDINÁRIA.

Por: Equipe Petições

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CIVIL. AÇÃO ORDINÁRIA. RECONHECIMENTO E DISSOLUÇÃO DE UNIÃO ESTÁVEL. CELEBRAÇÃO DE ACORDO COM FIXAÇÃO DE ALIMENTOS EM FAVOR DA EX-COMPANHEIRA. HOMOLOGAÇÃO. POSTERIOR FALECIMENTO DO ALIMENTANTE. EXTINÇÃO DA OBRIGAÇÃO PERSONALÍSSIMA DE PRESTAR ALIMENTOS. IMPOSSIBILIDADE DE TRANSMISSÃO AO ESPÓLIO.

1. Observado que os alimentos pagos pelo de cujus à recorrida, ex-companheira, decorrem de acordo celebrado no momento do encerramento da união estável, a referida obrigação, de natureza personalíssima, extingue-se com o óbito do alimentante, cabendo ao espólio recolher, tão somente, eventuais débitos não quitados pelo devedor quando em vida. Fica ressalvada a irrepetibilidade das importâncias percebidas pela alimentada. Por maioria.

2. Recurso especial provido.

(REsp 1354693/SP, Rel. Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, Rel. p/ Acórdão Ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 26/11/2014, DJe 20/02/2015)

 

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JURISPRUDÊNCIA NA ÍNTEGRA

RECURSO ESPECIAL Nº 1.354.693 - SP (2012⁄0232164-8)
 
 
RELATÓRIO
 
MINISTRA MARIA ISABEL GALLOTTI: Trata-se de recurso especial interposto por A.O.M.C e outra, com base nas alíneas "a" e "c", do art. 105, da Constituição, contra acórdão proferido pela 8ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo que, com base no art. 1700 do Código Civil de 2002, considerou que, falecido o devedor de pensão alimentícia fixada em favor de sua ex-companheira por sentença transitada em julgado, a obrigação transmite-se ao espólio e o pagamento deve ter continuidade até o trânsito em julgado da sentença de partilha, circunstância que delimitará a extinção da obrigação. Após o que restará à alimentada "requerer, se for o caso, os alimentos dos parentes próximos [seus, evidentemente, não parentes do de cujus] nos termos dos artigos 1696 a 1698, do Código Civil".
Alegam as recorrentes (herdeiras do falecido alimentante) violação aos art. 535 do CPC, sob o argumento de que o acórdão recorrido não esclareceu o termo final da obrigação alimentar, a despeito da oposição de embargos de declaração; 1694, 1696, 1697 e 1700, do Código Civil de 2002; e 23 da Lei 6.515⁄77, que, segunde entendem, estabelecem a transmissão de obrigação alimentar, exclusivamente, em relação às prestações vencidas antes do óbito do devedor principal, conforme orientação da 3ª Turma deste Tribunal no julgamento do RESP 62.112⁄SC PR e entendimento do TJMG sobre o tema. Em reforço, argumentam que os filhos da recorrida são bem sucedidos profissionalmente, cabendo a eles, e não às recorrentes, filhas de seu falecido ex-companheiro, alimentá-la.
Contrarrazões, nas quais argumenta a recorrida que já levantou as quantias depositadas até o termo da partilha feita por inventário extrajudicial, valores estes irrepetíveis, o que ocasiona a perda de interesse em recorrer. No mérito, sustenta a transmissibilidade da obrigação alimentar ao espólio, com base no art. 1.700 do Código Civil de 2002 (e-STJ fls. 1031-1045). Pede o não conhecimento ou o não provimento do recurso especial.
O Ministério Público Federal manifestou-se pelo conhecimento e não provimento do recurso especial (fls. 1096-1100).
É o relatório.
 
 
RECURSO ESPECIAL Nº 1.354.693 - SP (2012⁄0232164-8)
 
 
VOTO
 
MINISTRA MARIA ISABEL GALLOTTI (Relatora): Anoto, inicialmente, que S.E.A.H., ora recorrida, ajuizou ação de alimentos contra A.J.C.J., convertida em ação de reconhecimento e dissolução de união estável c⁄c partilha de bens e fixação de alimentos, decidida por sentença homologatória de acordo celebrado entre as partes (fls. 616-619), transitada em julgado no dia 16.4.2004 (fl. 620), na qual foram estabelecidos alimentos no valor de R$ 3.000,00 a serem suportados pelo réu, corrigidos anualmente segundo a variação do IGPM e descontados das parcelas do contrato de parceria agrícola de que era beneficiário o falecido alimentante.
Mediante a petição de fls. 647-649, protocolada em 13.6.2008, as ora recorrentes, na condição de filhas e herdeiras do alimentante, comunicaram o seu falecimento ocorrido no dia 23 de maio do mesmo ano, motivo pelo qual requereram a imediata suspensão dos referidos descontos, sob o argumento de que a obrigação fora extinta em razão de sua natureza personalíssima, circunstância que, segundo afirmaram, também impediria a sua transmissão, salvo em relação às eventuais prestações vencidas.
A Juíza de Direito da 9º Vara de Família e Sucessões da Comarca de São Paulo - Foro Central Cível, em caráter liminar, acolheu o pleito apenas para autorizar o depósito judicial da pensão alimentícia (fl. 647), mas, posteriormente, autorizou a suspensão do pagamento dos alimentos por considerar que a regra da transmissibilidade da obrigação do dever alimentar prevista no art. 1700 do Código Civil de 2002 não incide de forma automática, podendo a credora ajuizar nova ação na qual os requisitos de necessidade e possibilidade deverão ser apurados com base nos rendimentos do espólio, hipótese em que a obrigação será extinta com a partilha dos bens do falecido (fls. 695 e 764).
Interpostos agravos de instrumento por ambas as partes, a decisão foi parcialmente reformada, determinando o TJSP que, morto o devedor principal, a obrigação alimentar a ele imposta transmite-se de imediato ao espólio, no mesmo valor, devendo o pagamento ter continuidade até o trânsito em julgado da sentença de partilha, extinguindo-se a obrigação com o término do inventário.
Argumentam as recorrentes que a transmissão de obrigação alimentar prevista nos arts. 1700 do CC⁄2002 e 23 da Lei 6.515⁄77 aplica-se, exclusivamente, às prestações vencidas antes do óbito do devedor, conforme orientação da 3ª Turma deste Tribunal no julgamento do RESP 62.112⁄SC PR e entendimento do TJMG sobre o tema, hipótese que não se verifica, no caso presente. 
O recurso especial tem por objeto, portanto, a transmissibilidade da obrigação de prestar alimentos ao espólio ou aos herdeiros do devedor, tema que passo a examinar a seguir.
 
I
 
Afasto a preliminar de perda de interesse de recorrer suscitada nas contrarrazões.
Com efeito, as recorrentes insurgem-se contra a subsistência da obrigação alimentar após o óbito do alimentante. Se os valores depositados foram levantados e se, em caso de provimento do recurso especial, caberia ou não sua devolução, é matéria de mérito.
 
                                           II
 
Sem razão as recorrentes em relação à violação ao art. 535 do CPC. E isso porque foi claramente determinada a continuidade do pagamento da pensão alimentícia, pelo espólio, até o trânsito em julgado da sentença de partilha, período em que poderá ser ajuizada ação revisional, desde que alterados os requisitos para a fixação dos alimentos, como se observa na seguintes passagens do voto condutor do acórdão recorrido (fl. 925):
 
Meu voto improvê o recurso das filhas Andréa e Helena, dá provimento ao da ex-companheira Sônia; para que possa continuar a receber diretamente da fonte pagadora o pensionamento que sempre lhe foi disponibilizado, até o óbito do alimentante. A perdurar até o término do inventário respectivo.
 
E do voto condutor dos embargos de declaração opostos pelas ora recorrentes (fls. 944-945):
 
O acórdão embargado se limitou a confirmar a decisão agravada. Esta, como assinalado a fI. 904 (item 3), enfatizando "a subsistência do dever alimentar mesmo após o óbito'; a teor da regra do artigo 1700 do atual Código Civil. A ser solvido mediante as forças do espólio, até a partilha (item cit.). Facultada a via revisional - até a partilha, evidentemente - em, antes da divisão do acervo, havendo modificação nas condições econômicas (fl. cit., "em obediência às condições pessoais das herdeiras e do patrimônio da alimentanda") de credor e devedor. Óbvio, portanto, em atenção ao que se colocou no item 5 de fl. 916 - para entender, basta saber ler -, que eventual alteração no valor alimentar (fruto de revisional) valeria até o momento da divisão do acervo entre os herdeiros. Ganhando repercussão significativa, portanto, apenas se esta tardar o inventário permanecer indefinidamente em aberto.
 
Não existe, pois, ofensa ao art. 535 do CPC.
 
III
 
 
O princípio tradicional e absoluto da intransmissibilidade da obrigação alimentar, corolário da qualidade personalíssima da obrigação, positivado no art. 402 do Código Civil de 1916, foi fortemente mitigado pelo art. 23 da denominada “Lei do Divórcio” (Lei 6.515⁄77).
Rolf Madaleno, em seu “Curso de direito de família”, reportando-se a escrito de Sergio Gischkow Pereira, sumaria a perplexidade causada pela inovação, e as correntes doutrinárias que buscaram definir seu alcance:
 
“À luz das mudanças na transmissão da obrigação alimentar colacionadas pela Lei nº 6.515⁄77, escrevera Sergio Gischkow Pereira, se estar ingressando em terreno tormentoso e nebuloso, tendo se edificado quatro correntes de opinião: pela primeira corrente a transmissão da obrigação alimentar passaria pura e simplesmente aos herdeiros do alimentante. Uma segunda vertente doutrinária entendia ser transmissível apenas o débito existente ao tempo do falecimento do devedor de alimentos. A terceira corrente defendia que a dívida alimentar era limitada às forças da herança, e destinada a atender qualquer classe de credores, e se o alimentário também fosse herdeiro do sucedido, o seu crédito alimentar deveria ser subtraído do seu quinhão hereditário. Para Sergio Gischkow Pereira, uma vez terminada a partilha desapareceria a obrigação alimentar dos herdeiros porque eles não podiam ser compelidos a reservarem partes de seus quinhões para atender às demandas de alimentos.
Uma quarta versão entendia ser transmissível somente a obrigação alimentar devida de um cônjuge para o outro, porque a Lei do Divórcio só podia tratar dos direitos dos consortes.” (Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 643).
 
Com o art. 1.700 do novo Código, inverteu-se a regra geral: caiu o dogma da intransmissibilidade da obrigação de prestar alimentos aos herdeiros do devedor e passou a ser expresso em lei exatamente o contrário: a transmissibilidade aos herdeiros da obrigação de prestar alimentos.
A nova regra (transmissibilidade) aplica-se hoje à generalidade das hipóteses de obrigação legal de prestar alimentos entre cônjuges, companheiros e parentes, não sendo mais pertinente a tese de que incidiria apenas no caso de pensões estabelecidas por ocasião da ruptura do vínculo conjugal como argumentava parte da doutrina com base no art. 23 da Lei do Divórcio.
Quanto às demais correntes, rejeito a tese de que a transmissibilidade somente atingiria as obrigações vencidas quando da morte do devedor, conclusão que tornaria o antigo art. 23 da Lei do Divórcio e o atual 1.700 do Código Civil de 2002 absolutamente inócuos. Com efeito, as prestações vencidas são dívidas da herança, cobradas na forma do direito sucessório, como quaisquer outras.
Igualmente, não me filio ao entendimento de que a obrigação alimentar se transmita pura e simplesmente aos herdeiros, pessoalmente identificados. Fosse assim, não se justificaria a remissão feita pelo art. 1.700 ao art. 1.694, segundo o qual os alimentos devem ser fixados “na proporção das necessidades do reclamante e dos recursos da pessoa obrigada.” Ora, as possibilidades do herdeiro em face das necessidades do alimentado pelo falecido não guardarão, necessariamente, a mesma proporção. A prestação alimentícia fora fixada tendo em vista as possibilidades do falecido, vale dizer, não apenas o seu patrimônio, mas também a remuneração auferida com seu trabalho, naturalmente extinta.
O Ministro Luís Felipe Salomão, em elucidativo voto no Recurso Especial 864.043-RS, cujo julgamento não foi concluído em razão da perda superveniente de objeto do recurso, após descrever a doutrina e os precedentes do STJ sobre o tema, acolheu a solução de que a transmissibilidade a que alude o art. 1.700 do Código Civil de 2002 diz respeito a "obrigações pré-constituídas pelo de cujus, devendo ser vista como encargos da herança, não como obrigações transmitidas pessoalmente aos herdeiros por causa mortis". Assim incluídas também aquelas que se vencerem depois da morte, "desde que haja título constitutivo dessa obrigação em data pretérita". Acentuou que "não se vislumbra o propósito legislativo de onerar pessoalmente os herdeiros do falecido com obrigação contraída pelo de cujus, mas, antes, de onerar simplesmente a herança com a obrigação alimentar pré-constituída por ocasião do óbito, obrigação essa que, dada sua dignidade, por vezes, deve mesmo prevalecer em relação aos direitos sucessórios."
A existência de decisão judicial impositiva da obrigação alimentar, proferida em data anterior ao falecimento do alimentante, já fora adotada como requisito para a transmissão da obrigação ao herdeiro, no Recurso Especial 509.801⁄SP, relator o Ministro Aldir Passarinho Junior, DJe 11.11.2010, acórdão no qual interpretado o art. 23 da Lei 6.515⁄77. No citado precedente, cuidava-se de ação de alimentos intentada contra o ex-companheiro em vida, tendo-se decidido pela impossibilidade do prosseguimento da ação contra o espólio. 
Posteriormente, a 4ª Turma, no julgamento do REsp. 1.130.742⁄DF - no qual se examinou caso em que a ação de alimentos fora ajuizada contra o espólio, após, portanto, o falecimento do alimentante -, proferiu o seguinte acórdão, sob a relatoria do Ministro Luís Felipe Salomão:
 
AÇÃO DE ALIMENTOS. RECURSO ESPECIAL. EXAME DE MATÉRIA CONSTITUCIONAL. INVIABILIDADE. OMISSÃO. INEXISTÊNCIA. AÇÃO DE ALIMENTOS PROPOSTA POR MENOR, EM FACE DO ESPÓLIO DE SEU GENITOR. INEXISTÊNCIA DE ACORDO OU SENTENÇA FIXANDO ALIMENTOS POR OCASIÃO DO FALECIMENTO DO AUTOR DA HERANÇA. ILEGITIMIDADE PASSIVA DO ESPÓLIO.
1. Embora seja dever de todo magistrado velar a Constituição Federal, para que se evite supressão de competência do egrégio STF, não se admite apreciação, em sede de recurso especial, de matéria constitucional.
2. Os alimentos ostentam caráter personalíssimo, por isso, no que tange à obrigação alimentar, não há falar em transmissão do dever jurídico (em abstrato) de prestá-los.
3. Assim, embora a jurisprudência desta Corte Superior admita, nos termos do artigo 23 da Lei do Divórcio e 1.700 do Código Civil, que, caso exista obrigação alimentar preestabelecida por acordo ou sentença - por ocasião do falecimento do autor da herança -, possa ser ajuizada ação de alimentos em face do Espólio, de modo que o alimentando não fique à mercê do encerramento do inventário para que perceba as verbas alimentares, não há cogitar em transmissão do dever jurídico de prestar alimentos, em razão do seu caráter personalíssimo e, portanto, intransmissível. Precedentes.
4. De todo modo, em sendo o autor da herança servidor público ou militar, no que tange à verba alimentar superveniente ao óbito, o procedimento adequado para o recebimento, por seu dependente, consiste no requerimento administrativo de pensão ao órgão pagador do de cujus.
5. Recurso especial não provido.
(DJ 17.12.2012)
 
Esse entendimento foi corroborado no julgamento do REsp 1.337.862⁄SP, acórdão pendente de publicação, ao qual aderi, embora com fundamentação diferente, conforme se depreenderá dos tópicos seguintes.
Para examinar os fundamentos de ofensa aos artigos 1694, 1696, 1697 e 1700, do Código Civil de 2002; e 23 da Lei 6.515⁄77, bem assim de dissídio jurisprudencial, que tratam da questão relativa à transmissão da obrigação alimentar decorrente do falecimento do devedor, considero pertinente distinguir o tratamento que deve ser dispensado, de um lado às prestações vencidas no período entre a citação na ação de alimentos e a morte do alimentante e, de outro, às prestações posteriores ao óbito (caso dos autos).
 
Prestações anteriores ao óbito
 
                 
             Entendo que a obrigação alimentar é preexistente à sentença que a estabelece, não sendo, ao meu sentir, a existência ou não de sentença condenatória anterior ao óbito do alimentante o critério norteador da transmissibilidade da obrigação alimentar estatuída no art. 1.700 do Código de 2002.
Considero que o dever jurídico, e consequentemente a obrigação, existem desde que presentes (1) o vínculo conjugal ou de parentesco, (2) a possibilidade do alimentante e (3) a necessidade do alimentado. Esta necessidade, se não é suprida espontaneamente pelo obrigado (conduta que é a regra nas relações familiares não litigiosas), se manifesta no momento em que o credor dos alimentos os reclama em juízo, motivo pelo qual a lei dispõe que a eficácia da sentença condenatória retroage à data da citação.
A propósito da natureza da sentença que impõe obrigação alimentar e do termo inicial dos alimentos, é elucidativa a lição de YUSSEF SAID CAHALI:
 
"A fixação do momento a partir do qual é devida a pensão alimentícia vincula-se à natureza da sentença na ação de alimentos.
Anota Pelissier que, enquanto o estado de necessidade não se faz sentir, a solidariedade familiar permanece em estado latente; nenhum auxílio é fornecido, de vez que não é necessário; mas esta ausência de prestações não deve levar à conclusão de um nada jurídicoantes da superveniência da necessidade: o liame de solidariedade existe sempre, haja ou não estado de necessidade; ele dá nascimento, por si mesmo, a uma vocação aos alimentos que toma o aspecto de um direito eventual; o direito à obtenção de alimentos apresenta  todos os característicos de um direito eventual, para que possa aí haver direito individual, é necessário desde logo que a situação jurídica se realize progressivamente; é necessário que os elementos geradores do direito definitivo sejam reunidos sucessivamente, de sorte que este direito possa ser encarado em um tempo, como futuro; esta situação se apresenta na obrigação alimentar, pois os elementos do direito aos alimentos apresentam-se em etapas sucessivas; assim, desde logo, o liame familiar, e em seguida, mais ou menos ocasionalmente, o estado de necessidade do credor e a condição de fortuna do devedor. Sustenta, daí, o princípio da transformação automática da vocação alimentar em direito exigível; a exigibilidade dos alimentos resulta do só fato das necessidades do credor e dos recursos do devedor; o juiz se limita, quando instado, a constatar a existência desse direito; ele não o cria;  sentença apenas sanciona a exigibilidade do direito alimentar, sem o estabelecer, e sob esse aspecto o julgamento seria declaratório e não constitutivo do direito.
Daí concluir: o direito alimentar, tornando-se exigível do só fato das necessidades do credor e dos recursos do devedor, o crédito alimentar começa a correr do dia em que essas circunstâncias de fato se encontram verificadas; é por esta razão que, em caso de ação em juízo, o crédito alimentar corre do dia do ajuizamento do pedido.
Essa eficácia da sentença nos limites assim enunciados confirma o acerto da lição de Chiovenda, no sentido de qualificá-la como dispositiva, conforme foi visto anteriormente (n. 15 e nota 196).
Diana Amato refere-se que a retroação do benefício ao momento da ação se ajusta melhor à natureza declarativa da sentença do que à sua constitutividade; mas procura conciliar a natureza constitutiva e a eficácia retroativa da sentença, qualificando esta eficácia relativa como vontade da lei a respeito da oportunidade de fazer valer a nova situação também para o passado.
E a vontade da nova lei assim se manifesta no direito brasileiro, sendo expresso o art. 13, § 2º, da Lei 5.478⁄68, no sentido de que "em qualquer caso, os alimentos fixados retroagem à data da citação", o que é confirmado pela jurisprudência.
Consagrou-se, assim, o entendimento consubstanciado na Súmula  226, do STF: "Na ação de desquite, os alimentos são devidos desde a inicial e não da data da decisão que os concede", o que se estendia às ações de alimentos, considerando-se que "a sentença que concede alimentos tem efeitos ex tunc, como ensina Savigny (Traité, 6º, § 244), e com isso não se estará concedendo alimentos pretéritos, pois como tal só podem ser considerados aqueles anteriores à inicial da ação.
A regra aplica-se igualmente em matéria de alimentos oferecidos do art. 24 da Lei 5.478⁄68."
(CAHALI, Yussef Said. Dos Alimentos. 2ª edição, revista e ampliada.  São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993, fls. 639-641, grifos não constantes do original).
 
Reconhecida por sentença a obrigação alimentar, a sua eficácia, por força do art. 13, § 2º, da Lei 5.478⁄68 e da Súmula 277⁄STJ, retroage a partir da citação.
As necessidades do alimentado reconhecidas pela sentença existem desde o ajuizamento da ação ainda em vida do falecido. Se é certo que o necessitado sobreviveu durante os longos anos de tramitação da causa à custa de privações, compaixão alheia, favores de pessoas desobrigadas e⁄ou empréstimos, serviria de estímulo, à postergação do final do litígio, solução diversa da consagrada pela lei, pela doutrina e pela jurisprudência sumulada.
Observo que as parcelas vencidas antes do óbito são dívidas do falecido, da mesma forma que as demais dívidas patrimoniais de qualquer natureza, respondendo por elas o acervo hereditário. Não se cuida, aqui, de transmissão da obrigação alimentar aos herdeiros (vedada pelo art. 402 do Código Civil revogado e estabelecida como regra pelo art. 1.700 do Código vigente), mas do pagamento das dívidas do falecido dentro das forças da herança, independentemente da qualidade de herdeiro ou não do beneficiário dos alimentos vencidos. É exatamente em razão de estas prestações anteriores ao óbito constituírem dívidas do acervo hereditário, que não se sustenta a tese de que a transmissão a que alude o art. 1.700 do Código Civil seria apenas das parcelas vencidas até a data do falecimento, sob pena de tornar o dispositivo inteiramente inútil. 
 
Prestações posteriores ao óbito
 
Passo a examinar a questão referente ao pagamento das parcelas vincendas quando do óbito.
Dispõe o art. 1.700:
"A obrigação de prestar alimentos transmite-se aos herdeiros do devedor, na forma do art. 1.694."
 
E o art. 1.694, ao qual o art. 1.700 faz expressa remissão:
 
"Podem os parentes, os cônjuges ou companheiros pedir uns aos outros os alimentos de que necessitem para viver de modo compatível com sua condição social, inclusive para atender às necessidades de sua educação.
§º 1º. Os alimentos devem ser fixados na proporção das necessidades do reclamante e dos recursos da pessoa obrigada.
§º 2º. Os alimentos serão apenas os indispensáveis à subsistência, quando a situação de necessidade resultar de culpa de quem os pleiteia."
 
Em primeiro lugar, cumpre distinguir a pessoa dos herdeiros, a que se refere a regra do art. 1.700, da figura do espólio.
O espólio não tem personalidade jurídica própria, embora tenha capacidade de estar em juízo representado pelo inventariante (CPC, art. 12, V). O espólio responde por obrigações assumidas em vida pelo falecido, qualquer que seja sua origem, contratual ou legal. Após a morte, não mais pode ser contraída, em nome do falecido (ou do espólio), nova obrigação derivada de fato ou situação surgida depois do óbito. Trata-se de universalidade de bens e obrigações, de titularidade do falecido, a qual tem por termo a partilha. O espólio substitui o falecido nas ações em curso quando do óbito (CPC, art. 43). Após a partilha, eventuais obrigações do falecido serão de responsabilidade dos herdeiros, nas forças da herança e dentro das proporções dos respectivos quinhões hereditários (Código Civil de 2002, arts. 1.792 e 1.997).
O art. 1.700 não determina a transmissão da obrigação alimentar do falecido para o espólio. A obrigação transmite-se aos herdeiros, nas forças da herança (art. 1.792 do Código Civil e Enunciado 343 do CEJ).
Como já exposto, afasto, de plano, a interpretação de que os herdeiros ficariam automaticamente responsáveis pela continuidade da pensão alimentícia (prestações posteriores ao óbito) à qual o autor da herança estava obrigado.
E isso porque o art. 1.700 remete ao art. 1.694, cujo § 1º estabelece que os alimentos devem ser fixados de acordo com as necessidades de quem os reclama e as possibilidades de quem é obrigado ao encargo. A verba alimentar foi estabelecida de acordo com as possibilidades do então alimentante, autor da herança, tendo em vista não só o seu patrimônio, mas também seus ganhos mensais. Quando do estabelecimento da pensão, obviamente não foram levadas em conta as possibilidades de cada um de seus futuros herdeiros, considerado o seu eventual quinhão hereditário. Explico: a condição de herdeiro, considerado o valor e o rendimento dos bens integrantes de seu quinhão, pode eventualmente não permitir tenha o herdeiro condições de, sem prejudicar a própria subsistência, adimplir com a prestação fixada para ser paga pelo falecido. O herdeiro pode não ter condições de trabalhar; o falecido, ao revés, pode ter deixado pequeno acervo hereditário (apenas o imóvel de residência da família, por exemplo), mas ter possuído ótima remuneração no mercado de trabalho, extinta, naturalmente, com o óbito.
Assim, a transmissão automática, pura e simples, do encargo mensal para os herdeiros tornaria sem sentido a remissão feita pelo art. 1.700 ao art. 1.694, segundo o qual os alimentos são devidos de acordo com as necessidades do reclamante e as possibilidades do obrigado. 
Por outro lado, a circunstância de não haver a transferência automática, pura e simples, da obrigação de pagar a pensão devida pelo falecido não autoriza, a meu sentir, com a devida vênia dos precedentes em sentido contrário (RESP 775.180⁄MT, 4ª Turma, relator o Ministro João Otávio de Noronha, DJ 2.2.2010 e AgRg RESP 981.180⁄RS, 3ª Turma, relator o Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, DJ 15.12.2010), a interpretação de que o art. 1.700 não determine a transmissão aos herdeiros do dever legal (e, consequentemente, da obrigação correspondente) de prestar alimentos àqueles a quem o falecido os devia, naturalmente dentro das forças da herança.
A obrigação alimentar visa a atender finalidades de ordem pública e social, não devendo ser diminuída em sua dignidade, anular-se, perder expressão, em benefício do caráter meramente patrimonial e privado do direito sucessório, diante da atual redação do art. 1.700 do Código Civil.
Eloquente crítica a propósito da interpretação restritiva que parte da doutrina e precedentes do STJ conferem ao art. 1.700 é feita por Walsir Edson Rodrigues Júnior:
 
"São pacíficos os entendimentos doutrinário e jurisprudencial a respeito da possibilidade de estipulação de legados de alimentos (art. 1.920 do CC⁄2002), de renda vitalícia ou de pensão periódica (art. 1.926 do CC⁄2002) e de quantidades certas em prestações periódicas (art. 1.927 do CC⁄2002). Na verdade, em tais legados, o autor da herança, por meio de testamento, determina o cumprimento das disposições testamentárias, sempre nos limites das forças da herança, ou seja, esgotando os bens ou as forças da herança, cessa a obrigação.
É inconcebível o ordenamento jurídico admitir que o testador estipule um legado de alimentos para qualquer pessoa (que pode ter vinculo familiar ou não com o autor da herança), com a obrigação de que os herdeiros o cumpram no limite das forças de herança e vedar a transmissão da obrigação de prestar alimentos, estipulada legalmente, para atender as necessidades de um parente, cônjuge ou companheiro do autor da herança.
Pior ainda é admitir a possibilidade de legado de renda vitalícia ou pensão periódica e de legado de quantidade certas em prestações periódicas, pois tais legados podem ser estipulados até para quem não precisa de alimentos, tendo como requisito, portanto, a mera liberdade do testador. Nada impede que o testador ordene ao seu herdeiro, sempre nos limites das forças da herança e sem afetar a legítima dos herdeiros necessários, que dê ao seu vizinho João (milionário) R$ 2.000,00 todos os meses, por toda a sua vida. Como reconhecer e admitir esse tipo de legado e não admitir a transmissão da obrigação de prestar alimentos que, conforme já estudado, só existe (ou persiste) diante da necessidade de quem recebe e em razão de um vinculo familiar de proximidade que existia entre o alimentante e o alimentário? (RODRIGUES JÚNIOR, Walsir Edson. Alimentos e a Transmissibilidade da Obrigação de Prestá-los. Porto Alegre: RBDF – Nº 37, 2006)."
 
O escopo do art. 1.700 do Código Civil foi, segundo meu entendimento, tendo em vista a dignidade ímpar da obrigação alimentar, sua relevância social, estabelecer o dever legal de prestar alimentos, dentro das forças da herança, àqueles a quem o falecido tinha obrigação de prestá-los, surtindo o mesmo efeito de um legado estipulado voluntariamente em testamento.
Interessantes são os exemplos de legado de alimentos deixados por Garcia d'Avila em seu testamento, no ano de 1609, em favor de suas netas, órfãs de seu filho ilegítimo João Homem, legado este que perduraria enquanto não se casassem e residissem em Tatuapara,  e também em favor dos possíveis herdeiros não nominados de outro neto seu que falecera no Rio de Janeiro, em relação aos quais dispôs: "se vierem a essa terra, que meus herdeiros os agasalhem, pois são seus parentes" (História da Casa da Torre, Pedro Calmon, José Olympio Editora, Nota B, 2ª edição).
Atualmente, o art. 1.920 do Código Civil de 2002, assim como o fazia o art. 1.687 do Código de 1916, prevê que o legado de alimentos abrange "o sustento, a cura, o vestuário e a casa, enquanto o legatário viver, além de educação, se ele for menor". O testador pode estipular o valor dos alimentos e o período em que será devido. No silêncio, anota Theotônio Negrão, "entende-se que o legado deve ser vitalício e fixado conforme os critérios previstos neste dispositivo legal, considerando-se também as necessidades específicas do alimentante e as próprias forças da herança (v. art. 1792)" ("Código Civil e legislação civil em vigor, 30ª edição, Saraiva, 2011, p. 632).
Mas o legado de alimentos, admitido desde os primórdios de nossa História, depende de ato de vontade do testador.
Hoje, por força do art. 1.700 do Código de 2002, a falta de estipulação de legado pelo alimentante não deixará ao desamparo aqueles a quem tinha obrigação de alimentar, independentemente da circunstância de esta obrigação ter sido cumprida em vida informal e espontaneamente, por acordo escrito ou por decisão judicial, desde que a herança suporte o encargo.
Acompanhando a mesma linha de que não se deve dar interpretação restritiva ao alcance da vigente regra da transmissibilidade da obrigação alimentar aos herdeiros, afasto também a tese de que o art. 1.700 determine a transferência da obrigação apenas até a partilha. Tal termo não se justifica, porque, como já visto, a obrigação não é transmitida ao espólio encerrado, mas aos herdeiros.
Nesse sentido, a doutrina de Sérgio Gischkow:
 
"Editado o novo Código Civil, importantíssima modificação houve na matéria. Como todos os alimentos de direito de família estão regulados em um mesmo local (Livro IV, Título, Subtítulo III; veja-se que o art. 1.694 cogita de parentes, cônjuges e companheiros), segue que não mais se sustenta a tese antes majoritária, que limitava a transmissão aos alimentos surgidos no interior de uma separação judicial ou de um divórcio. Hoje quaisquer alimentos de direito de família se transmitem aos herdeiros do devedor, dentro das forças da herança. Com satisfação, vejo prevalecer a tese que sempre me pareceu mais correta.
Yussef Said Cahali aceita que, em face do atual Código Civil, outra não pode ser a solução. Belmiro Pedro Welter, Silvio de Salvo Venosa, Maria Helena Diniz, tem igual compreensão. Forçoso, contudo, admitir que a resistência continua existindo: a) Regina Beatriz Tavares da Silva diz que a transmissão deve ser restrita ao companheiro e ao cônjuge, dependendo, quanto ao último, de seu direito à herança; b) Zeno  Veloso quer que a doutrina e os tribunais restrinjam a exegese do art. 1.700 e tem por inadmissível  que filhos do falecido sejam obrigados a pensionar um tio; c) Nelcy Pereira Lessa informa que o IBDFAM quer nova redação para o art. 1700, a fim de que só abranja alimentos decorrentes do casamento ou da união estável; d) Washington Epaminondas Medeiros Barra defende uma interpretação o mais restritiva possível ao art. 1700, pois vê nele violação de elementares princípios gerais de direito, estando maculado pela eiva de inconstitucionalidade."
Lamento, porém, que tenha surgido outra fórmula restritiva ao magnífico sentido do art. 23, hoje 1.700: a transmissão operaria somente até a partilha dos bens do de cujus. Mais perigosa esta interpretação porque seus argumentos valem para o art. 1.700 do Código Civil de 2002. Neste teor foi deliberado do 4º Grupo Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Mais preocupante é que o Superior Tribunal de Justiça resolveu por igual forma. Mais uma vez se revela a, com toda a vênia, injustificada resistência aos arts. 23-1.700. Não tenho dúvida de que a transmissão continua mesmo feita a partilha. Esta exegese restritiva não pode ser acatada porque destrói a razão de ser da transmissibilidade e os elevados objetivos sociais e humanos que ditaram sua aceitação pelo direito brasileiro. Outra vez se põe a herança acima dos alimentos e os arts. 23-1.700 ficam praticamente letra morta. Não importa, inclusive, que o alimentando reúna a condição de herdeiro; ainda que seja óbvio que se deva fazer uma compensação, para que o alimentado não receba duas vezes, seria injusto que desaparecessem os alimentos  com a partilha, pois pode simplesmente acontecer que o quinhão hereditário seja totalmente insuficiente para a manutenção do alimentado! Neste caso penso devem os quinhões dos demais herdeiros ser atingidos pelos alimentos. Interessante notar, todavia, que os dois acórdãos citados tratam de situações nas quais o alimentado cumulava a condição de herdeiro; continua a descoberta a hipótese em que não suceda esta cumulação, como no exemplo do irmão que alimentava o irmão, e, morrendo o alimentante, deixa filhos que recebem a totalidade da herança; ora, como o alimentado não é herdeiro, nada receberia da partilha, impondo-se a meu ver, pelo menos em tal quadro, que os quinhões dos herdeiros respondam pelo débito alimentar; resta desejar que a jurisprudência acate esta solução justa.
(GISCHKOW, Sérgio. "Estudos de Direito de Família", Livraria do Advogado Editora, Porto Alegre, 2004, p. 150).
 
Ademais, atualmente, após a entrada em vigor da nova redação dada ao art. 982 do CPC pela Lei 11.441⁄2007, não havendo testamento ou interessado incapaz, o inventário e a partilha podem dar-se por meio de escritura pública, título hábil para o registro imobiliário. Dessa forma, na hipótese de não ser o alimentado herdeiro do falecido, o termo final de seu direito – caso assim fosse considerado o ato extrajudicial de partilha – dependeria de mera formalidade cartorária, realizada no momento estipulado pelo herdeiro⁄devedor por sucessão dos alimentos, o qual poria, com este ato, ao seu exclusivo critério, fim à obrigação.
Na mesma linha, rejeito, igualmente, a tese de que, sendo o alimentado também herdeiro, não possa ele, com base no art. 1.700 do Código Civil, postular, mediante o ajuizamento de ação própria, alimentos contra os demais herdeiros, naturalmente dentro da força das respectivas quotas hereditárias.
Admitindo a possibilidade de o co-herdeiro beneficiar-se da regra do art. 1.700, lembro, entre outros, a doutrina de Walsir Edson Rodrigues Júnior :
 
O equívoco está em pressupor que todo herdeiro (no caso, o cônjuge ou o companheiro) recebe o suficiente para suprir as suas necessidades. Não é a qualidade de herdeiro do credor da pensão alimentícia que deve determinar, de plano, a intransmissibilidade da obrigação de prestar alimentos pelos herdeiros do devedor da pensão, mas, tão-somente, a necessidade da referida verba alimentar, que deverá ser verificada em cada caso concreto respeitando sempre as forças da herança.
(RODRIGUES JÚNIOR, Walsir Edson. Alimentos e a Transmissibilidade da Obrigação de Prestá-los. Porto Alegre: RBDF – Nº 37, 2006).
 
É certo que, com a abertura da sucessão (Código Civil, art. 1.784), alteram-se as condições de fortuna e, por conseguinte, as necessidades do alimentado caso ele seja herdeiro. Mesmo antes da partilha, o ex-alimentado⁄herdeiro pode passar a ser pessoa rica, devendo obter o necessário para a sua subsistência, durante o processamento do inventário, mediante requerimento de antecipação de recursos, devidamente fundamentado, dirigido ao juiz do inventário, os quais serão abatidos de seu quinhão hereditário.
Assim, a partir da morte do alimentante, o alimentando-herdeiro deve, em princípio, habilitar-se nos autos do inventário e lá requerer os recursos necessários à sua subsistência.
Pode, todavia, acontecer de o alimentado, mesmo considerada a sua quota no acervo hereditário não partilhado, não possuir condições de subsistência, em razão de sua particular fragilidade (por exemplo, menoridade e⁄ou doença grave e incurável cujo tratamento impeça o trabalho e demande gastos extraordinários) e do pequeno vulto dos bens do espólio.
Neste caso, sendo os herdeiros pessoas com boa situação financeira, não vejo obstáculo para que sejam demandados pelo co-herdeiro ou pelo alimentado não herdeiro, devendo o postulante demonstrar, como causa de pedir da ação de alimentos, suas necessidades (excedentes de seu quinhão hereditário e impossibilidade de prover seu próprio sustento) e as possibilidades dos demais herdeiros (dentro das forças da herança). Nestas hipóteses ora figuradas, os demais herdeiros podem não ser parentes do alimentado em grau que permita o ajuizamento de ação de alimentos com base nos arts. 1.696 ou 1.697 (ascendentes, descendentes ou irmão), de forma que responderão à ação formulada com apoio no art. 1.700 consideradas, de um lado, as necessidades do autor e, de outro, as suas possibilidades nos limites das forças da herança, não podendo ser alcançados os seus rendimentos do trabalho e demais bens não herdados. Se, ao revés, o co-herdeiro em face de quem são reclamados os alimentos for irmão do reclamante⁄co-herdeiro, a ação poderá ser proposta com duas causas de pedir autônomas: a condição de herdeiro do falecido alimentante (Código Civil, art. 1.700) e o parentesco com o reclamante dos alimentos (Código, art. 1.697).
Em síntese, tenho que, com o óbito, extingue-se a pensão alimentar fixada contra o de cujus, tendo em vista as necessidades do alimentado e as extintas possibilidades do alimentante (CC, art. 1.694). As parcelas pretéritas são dívidas do falecido, a serem pagas pelo espólio antes da partilha.
Se, independentemente da condição de co-herdeiro, persistir a necessidade, não sendo suficiente postular adiantamento ao juízo do inventário, poderá o alimentado ajuizar nova ação de alimentos contra os herdeiros, invocando o direito previsto no art. 1.700 do Código Civil. Idêntico direito assiste ao ex-alimentado não herdeiro. Nada impede que esta nova ação seja ajuizada mesmo antes do fim do inventário e que nela seja formulado pedido de alimentos provisórios.
Na ação ajuizada com base no art. 1.700, o autor⁄reclamante (pessoa a quem o autor da herança tinha a obrigação de alimentar, herdeiro ou não) deverá demonstrar: (1) que era alimentado pelo falecido, que se desincumbia da obrigação espontaneamente, mesmo que de forma in natura, informal, ou por força de decisão judicial, ou dele era credor de alimentos fixados em acordo ou decisão judicial; (2) as suas necessidades e a impossibilidade de prover o seu próprio sustento ou tê-lo provido por seus próprios parentes (3) as possibilidades, dentro das forças da herança, do herdeiro⁄reclamado.
O herdeiro não será obrigado a prestar alimentos, mesmo dentro das forças de seu quinhão hereditário, se isto dificultar a sua própria sobrevivência. Dessa forma, um sobrinho (filho e herdeiro único do autor da herança) não deverá ser condenado a pagar alimentos a seu tio (irmão alimentado pelo autor da herança) ou à ex-companheira do pai (alimentada pelo ex-companheiro) se o único bem herdado for o imóvel onde reside, ou se despender os parcos rendimentos herdados com suas necessidades básicas. Por outro lado, o tio ou a ex-companheira do falecido não deverão ser privados dos alimentos de que necessitam para sobrevivência digna se o herdeiro tiver recebido valioso acervo, cujos rendimentos possibilitam o pagamento de pensão alimentícia.
Somente a propositura de nova ação, com outra causa de pedirensejará a justa e ponderada avaliação das necessidades e possibilidades do reclamante dos alimentos e do herdeiro (ou de cada um dos herdeiros), dentro das forças da herança, mas consideradas também as outras circunstâncias de vida das partes, entre as quais a possibilidade de o alimentado prover o seu próprio sustento ou ser mantido por seus parentes, caso os tenha, na ordem estabelecida nos arts. 1696 e 1697 do Código.
A avaliação dessas múltiplas circunstâncias é o motivo da remissão feita pelo art. 1.700 ao art. 1.694, a qual, do contrário, não teria sentido. Note-se que o art. 23 da Lei do Divórcio fazia remissão ao art. 1.796 do Código Civil de 1916 (responsabilidade do herdeiro pelas dívidas do falecido dentro das forças da herança). Ao contrário, o atual art. 1.700 não faz remissão ao art. 1.997 (equivalente ao art. 1.796 do antigo Código), mas ao art. 1.694 (alimentos devidos entre parentes segundo a necessidade do reclamante e a possibilidade do obrigado), reforçando a idéia de que o que se transmite é a própria obrigação legal alimentar, variável no tempo segundo as vicissitudes sofridas por alimentante e alimentado, e não mera dívida em valor estanque do falecido projetada para tempo futuro e indeterminado.
Em conclusão, tenho que a obrigação alimentar não é pura e simplesmente transmitida para os herdeiros. Com o óbito, deixa de ser exigível a prestação alimentícia fixada com base nas possibilidades do extinto alimentante (remuneração e patrimônio do falecido) em cotejo com as necessidades do alimentado. Parcelas anteriores ao óbito são devidas como qualquer passivo da herança.
Não se transmite obrigação que não era existente quando do óbito do sucedido. Aquele que era autossuficiente quando vivo o sucedido, não pode, em decorrência de revés superveniente ao óbito (acidente, doença etc), reclamar alimentos dos herdeiros com base no art. 1700.
O art. 1.700 dá fundamento para que o alimentado em vida pelo falecido (espontânea e informalmente, ou por força de acordo extrajudicial ou sentença em processo iniciado ainda em vida do sucedido) postule alimentos contra os herdeiros, consideradas as circunstâncias previstas no art. 1.694 (necessidade e possibilidade), sempre dentro das forças da herança (Código Civil, arts. 1.792 e 1.997). Se procedente a ação, os novos alimentos dependem sempre da manutenção dos pressupostos de necessidade e possibilidade e da existência de recursos herdados. Podem ser revistos, alterados ou extintos, conforme varie a necessidade do alimentado, de um lado, e as possibilidades do herdeiro⁄alimentante, sempre dentro das forças da herança. Extintos os bens herdados, extingue-se a pensão devida com base no art. 1.700, assim como se extinguiria eventual legado de alimentos fixado com base no art. 1.920 do Código de 2002.
No caso ora em exame, a alimentada não é herdeira, de forma que não vejo coerência no entendimento adotado pelo acórdão recorrido que, por um lado, com base no art. 1700 do Código Civil, entende que a obrigação alimentar transmite-se automaticamente após o óbito, mas, por outro, elege a data da partilha (no caso, ato extrajudicial potestativo das herdeiras⁄devedoras) como término da obrigação transmitida em favor de não herdeiro, estranho à partilha.
Não há notícias de parcelas vencidas anteriores óbito, e, portanto, extinguiu-se a obrigação alimentar de responsabilidade do falecido ou do espólio. Seria, em tese, possível o ajuizamento de nova ação pela alimentada contra os herdeiros, caso não tenha ela recursos suficientes para sua subsistência e nem condição de obtê-los mediante seu trabalho ou de seus próprios parentes.
Ressalto, por fim, que os documentos dos autos revelam que, por força das decisões proferidas pelas instâncias de origem, foram efetivados depósitos no valor correspondente à pensão alimentícia que o falecido estava obrigado a suportar (fls. 708, 741 e 762), valores, ao que tudo indica, transferidos para a ora recorrida, motivo pelo qual tem aplicação o princípio de que os alimentos pagos presumem-se consumidos e, portanto, não podem ser restituídos.
Em face do exposto, dou parcial provimento ao recurso especial, para afastar a transmissão automática da obrigação alimentar para o espólio, ressalvada a irrepetibilidade das quantias já pagas. 

É como voto.

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RECURSO ESPECIAL Nº 1.354.693 - SP (2012⁄0232164-8)
RELATORA : MINISTRA MARIA ISABEL GALLOTTI
RECORRENTE : A O M DE C E OUTRO
ADVOGADOS : CARLOS ROBERTO FORNES MATEUCCI
    MAISE GERBASI MORELLI E OUTRO(S)
RECORRIDO : S E A H
ADVOGADO : HELENA FRASCINO DE MINGO
ADVOGADA : MARIA SANDRA BRUNI FRUET CHOHFI E OUTRO(S)
 
VOTO-VISTA
 

MINISTRA NANCY ANDRIGHI

 

Cuida-se de recurso especial interposto por A O M DE C E OUTRO , com fundamento no art. 105, III, “a” e “c”, da CF, contra acórdão proferido pelo TJ⁄SP.
Ação: originariamente, de reconhecimento de união estável cumulada com alimentos, ajuizada pela recorrida em desfavor de Antônio João de Camargo Júnior – pai dos agravantes – na qual foi realizado acordo em abril de 2004, com partilha de bens e fixação de pensão alimentícia de R$ 3.000,00 em favor da recorrida.
Com o óbito do alimentante, em maio de 2008, pleitearam, as recorrentes, a extinção da obrigação alimentar, ou, subsidiariamente, seu depósito em juízo.
Decisão interlocutória: fixou a necessidade de ajuizamento de nova ação por parte da alimentada, agora em desfavor do espólio, pleiteando alimentos.
Embargos de declaração: autorizou o levantamento, pela alimentada, dos valores depositados em juízo, e considerou os depósitos judiciais efetuados em data posterior, como rendimentos do espólio.
Acórdão: o TJ⁄SP negou provimento ao agravo de instrumento interposto pelas recorrentes e deu provimento ao agravo de instrumento da recorrida, em julgado assim ementado:
ALIMENTOS – Morte do alimentando- Subsistência da obrigação estabelecida em favor da ex-companheira, mesmo após o óbito, a teor da regra do artigo 1700 do Código Civil – Implemento através das forças da herança – Agravo das filhas do primeiro leito do de cujus improvido, negada sua extinção – Provido o da ex-companheira, para levantamento dos importes depositados em Juízo.
 
Em síntese do voto condutor, o Relator afirmou que “Meu voto improve o recurso das filhas Andrea e Helena, dá provimento ao da ex-companheira Sônia; para que possa continuar a receber diretamente da fonte pagadora o pensionamento que sempre lhe foi disponibilizado, até o óbito do alimentante. A perdurar até o término do inventário respectivo” (fl. 922, e-STJ).
Embargos de declaração: interpostos pelas recorrentes, foram rejeitados (fl. 944, e-STJ).
Embargos de declaração: interpostos pela recorrida, foram rejeitados (fl. 959, e-STJ).
Recurso especial: alega violação dos arts. 1.694, 1696, 1697 e 1700 do CC-02 e 23 da Lei do Divórcio, bem como dissídio jurisprudencial.
Afirma que deve cessar o pagamento de alimentos com o óbito do alimentante, perdurando a responsabilidade do espólio apenas sobre dívida alimentar do de cujus.
Contrarrazões: reafirma a recorrida a tese de que a obrigação alimentar se transmite após o óbito do alimentante, nos limites das forças da herança, independentemente do alimentado ostentar a condição de parente dos demais herdeiros.
Parecer do MPF: de lavra do Subprocurador-Geral da República Maurício Vieira Bracks, aponta para o não provimento do recurso especial. (fls. 1096⁄11000, e-STJ).
Voto da Relatora: Dá parcial provimento ao recurso especial, para “afastar a transmissão automática da obrigação alimentar para o espólio, ressalvada a irrepetibilidade das quantias já pagas”, afirmando, ainda que “se, independentemente da condição co-herdeiro, persistir a necessidade, não sendo suficiente postular adiantamento ao juízo do inventário, poderá o alimentado ajuizar nova ação de alimentos contra os herdeiros, invocando o direito previsto no art. 1.700 do Código Civil”.
 
Repisados os fatos, decido.
 
Cinge-se o debate em se discutir os limites da transmissão da obrigação de prestar alimentos, após o óbito do alimentante e, por conseguinte, o alcance do art. 1700 do CC-02, empregado pelo Tribunal de origem para determinar a continuidade do pagamento de pensão alimentícia, obrigação originária do de cujus, até o término do inventário respectivo.
01. Inicialmente, importa para uma melhor compreensão do debate aqui analisado, fixar que os alimentos pagos pelo de cujus, à recorrida, eram devidos em razão de acordo firmado ao fim de união estável, no ano de 2004, tendo o óbito do alimentante ocorrido em 2004.
02. Esclarecida a janela temporal do pagamento de alimentos à recorrida, e volvendo o debate que ora se trava, vê-se que a solução da controvérsia, trazida em recurso especial, passa, primeiramente, pela pacífica assertiva de que a obrigação alimentar é personalíssima, fato que irá parametrizar os limites interpretativos de toda a legislação de regência, incluindo-se, o art. 1.700 do CC-02, objeto deste recurso especial.
03. Releva, nesse sentido, trazer uma reafirmação dessa tese nas palavras de Rolf Madaleno, quando discorre sobre as características da obrigação alimentar:
Em primeiro lugar, é personalíssimo enquanto pessoal é o vínculo familiar entre o devedor e credor que compõe os polos da relação obrigacional. O crédito e a dívida são inseparáveis da pessoa, porque estão baseados em determinada qualidade que não é transmissível. (MADALENO, Rolf. in Curso de Direito de Família. 14º ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011. Pag. 840⁄841).
 
04. Nessa estreita senda deve ser lido comando do art. 1.700 do CC-02, que prevê a transmissão da obrigação de prestar alimentos, por ser uníssona a doutrina no sentido de que a obrigação alimentar é fruto da solidariedade familiar, não devendo, portanto, vincular pessoas fora desse contexto.
05. A morte do alimentante traz consigo a extinção da personalíssima, obrigação alimentar, pois não se pode conceber que um vínculo alimentar decorrente de uma já desfeita solidariedade entre o falecido-alimentante e a alimentada, além de perdurar por cerca de quatro anos após o término do relacionamento, ainda lance seus efeitos para além da vida do alimentante, deitando garras no patrimônio dos herdeiros, filhos do de cujus.
06. E aqui não causa espécie a limitação proposta no voto da Relatora, de que os alimentos respeitem os limites da herança, porque ainda assim, é o patrimônio de seus enteados (adquirido desde o óbito por força da saisine) que será agredido. Aliás, o que se transmite no disposto do artigo 1.700 do CC-02, é a dívida existente antes do óbito e nunca o dever ou a obrigação de pagar alimentos, pois personalíssima.
07. Não há vínculos entre os herdeiros do falecido e a ex-companheira que possibilite se protrair, indefinidamente, o pagamento dos alimentos a esta, fenecendo, assim, qualquer tentativa de transmitir a obrigação de prestação de alimentos, após a morte do alimentante.
08. Enfatize-se que quando o de cujus faleceu – 2008 – a união estável já estava desfeita há mais de 05 anos (desde o final de 2002), e os alimentos eram pagos há quatro anos, por força de acordo firmado pelos ex-companheiros.
09. O que há, e isso é inegável, até mesmo por força do expresso texto de lei, é a transmissão da dívida decorrente do débito alimentar, que por ventura não tenha sido pago pelo alimentante, enquanto em vida.
10. Essa limitação de efeitos não torna inócuo o texto legal que preconiza a transmissão, pois vem se dando, no âmbito do STJ, interpretação que embora lhe outorgue efetividade, não descura dos comandos macros que regem as relações das obrigações alimentares.
11. Daí a existência de precedentes que limitam a prestação dos alimentos, pelo espólio, à circunstância do alimentado também ser herdeiro, pois aqui existe o grave risco de que demoras, naturais ou provocadas, no curso do inventário, levem o alimentado à carência material inaceitável. Nesse sentido:
Direito civil e processual civil. Execução. Alimentos.
Transmissibilidade. Espólio.
- Transmite-se, aos herdeiros do alimentante, a obrigação de prestar alimentos, nos termos do art. 1.700 do CC⁄02.
- O espólio tem a obrigação de continuar prestando alimentos àquele a quem o falecido devia. Isso porque o alimentado e herdeiro não pode ficar à mercê do encerramento do inventário, considerada a morosidade inerente a tal procedimento e o caráter de necessidade intrínseco aos alimentos.
Recurso especial provido.
(REsp 1010963⁄MG, de minha Relatoria, TERCEIRA TURMA, DJe 05⁄08⁄2008).

 

12. Qualquer interpretação diversa, apesar de gerar mais efetividade ao art. 1.700 do CC-02, vergaria de maneira inaceitável os princípios que regem a obrigação alimentar, dando ensejo à criação de situações teratológicas, como o de viúvas pagando alimentos para ex-companheiros do de cujus, ou verdadeiro digladiar entre alimentados que também são herdeiros, todos pedindo, reciprocamente, alimentos.
13. Assim, admite-se a transmissão, apenas e tão somente quando o alimentado também seja herdeiro, e ainda assim enquanto perdurar o inventário, já se tratando aqui de uma excepcionalidade, porquanto extinta a obrigação alimentar desde o óbito.
14. A partir de então – no caso de herdeiros – ou a partir do óbito do alimentante – para aqueles que não o sejam –, fica extinto o direito de perceber alimentos com base no art. 1.694 do CC-02, ressaltando-se que os valores não pagos pelo alimentante, podem ser cobrados do espólio.
15. Dessa forma, tem-se que o Tribunal dissentiu do entendimento já firmado pelo STJ, razão porque, merece reforma.
16. Assim, pedido vênia à Ministra Relatora, DOU PROVIMENTO ao recurso especial para reconhecer que a obrigação de alimentos extingue-se com o óbito do alimentante, sendo ônus do espólio pagar apenas eventual débito alimentar não quitado pelo de cujus, ressalvando-se a irrepetibilidade dos valores já percebidos pela recorrida.

17. É como voto. 

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RECURSO ESPECIAL Nº 1.354.693 - SP (2012⁄0232164-8)
 
RELATORA : MINISTRA MARIA ISABEL GALLOTTI
RECORRENTE : A O M DE C E OUTRO
ADVOGADOS : CARLOS ROBERTO FORNES MATEUCCI
    MAISE GERBASI MORELLI E OUTRO(S)
RECORRIDO : S E A H
ADVOGADO : HELENA FRASCINO DE MINGO
ADVOGADA : MARIA SANDRA BRUNI FRUET CHOHFI E OUTRO(S)
 
VOTO
 
O EXMO. SR. MINISTRO ANTONIO CARLOS FERREIRA: Sr. Presidente, a discussão resume-se à interpretação do art. 1.700 do CC⁄2002.
Com efeito, nos termos do bem lançado voto vista da em. Ministra NANCY ANDRIGHI acerca do caso concreto, observado que os alimentos pagos pelo de cujus à recorrida, ex-companheira, decorrem de acordo celebrado no momento do encerramento da união estável, tem-se que a referida obrigação, de natureza personalíssima, extingue-se com o óbito do alimentante, cabendo ao espólio recolher, tão somente, eventuais débitos não quitados pelo devedor quando em vida. É oportuno ressalvar, igualmente, a irrepetibilidade das importâncias percebidas pela alimentada.
Peço vênia à Ministra ISABEL GALLOTTI para acompanhar a divergência, nos termos do voto da Ministra NANCY ANDRIGHI.

Dou provimento ao recurso especial.

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RECURSO ESPECIAL Nº 1.354.693 - SP (2012⁄0232164-8)
RELATORA : MINISTRA MARIA ISABEL GALLOTTI
RECORRENTE : A O M DE C E OUTRO
ADVOGADOS : CARLOS ROBERTO FORNES MATEUCCI
    MAISE GERBASI MORELLI E OUTRO(S)
RECORRIDO : S E A H
ADVOGADO : HELENA FRASCINO DE MINGO
ADVOGADA : MARIA SANDRA BRUNI FRUET CHOHFI E OUTRO(S)
 
VOTO-VISTA
 
MINISTRO RAUL ARAÚJO:
 

No presente recurso especial, houve dissenso entre os votos das ilustres Ministras MARIA ISABEL GALLOTTI, relatora do feito, e NANCY ANDRIGHI, que inaugurou a divergência e foi acompanhada pelos eminentes Ministros ANTONIO CARLOS FERREIRA, RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, MARCO BUZZI e SIDNEI BENETI.

Diante da riqueza dos debates e da qualidade dos votos proferidos, pedi vista dos autos para uma melhor capacitação acerca da controvérsia, quanto à questão.

O cerne da controvérsia em debate, como já devidamente relatado nos votos divergentes, cinge-se, basicamente, à interpretação do art. 1.700 do Código Civil e, via de consequência, aos limites da transmissão da obrigação de prestar alimentos por parte dos herdeiros do devedor falecido.

As normas pertinentes do Código Civil de 2002 têm os seguintes enunciados:

 
Art. 1.694. Podem os parentes, os cônjuges ou companheiros pedir uns aos outros os alimentos de que necessitem para viver de modo compatível com a sua condição social, inclusive para atender às necessidades de sua educação.
§ 1o Os alimentos devem ser fixados na proporção das necessidades do reclamante e dos recursos da pessoa obrigada.
§ 2o Os alimentos serão apenas os indispensáveis à subsistência, quando a situação de necessidade resultar de culpa de quem os pleiteia.
 
Art. 1.700. A obrigação de prestar alimentos transmite-se aos herdeiros do devedor, na forma do art. 1.694.
 

A eminente Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI propôs a seguinte solução para o caso ora em análise:

"Em conclusão, tenho que a obrigação alimentar não é pura e simplesmente transmitida para os herdeiros. Com o óbito, deixa de ser exigível a prestação alimentícia fixada com base nas possibilidades do extinto alimentante (remuneração e patrimônio do falecido) em cotejo com as necessidades do alimentado. Parcelas anteriores ao óbito são devidas como qualquer passivo da herança.
Não se transmite obrigação que não era existente quando do óbito do sucedido. Aquele que era autossuficiente quando vivo o sucedido, não pode, em decorrência de revés superveniente ao óbito (acidente, doença etc), reclamar alimentos dos herdeiros com base no art. 1.700.
O art. 1.700 dá fundamento para que o alimentado em vida pelo falecido (espontânea e informalmente, ou por força de acordo extrajudicial ou sentença em processo iniciado ainda em vida do sucedido) postule alimentos contra os herdeiros, consideradas as circunstâncias previstas no art. 1.694 (necessidade e possibilidade), sempre dentro das forças da herança (Código Civil, arts. 1.792 e 1.997). Se procedente a ação, os novos alimentos dependem sempre da manutenção dos pressupostos de necessidade e possibilidade e da existência de recursos herdados. Podem ser revistos, alterados ou extintos, conforme varie a necessidade do alimentado, de um lado, e as possibilidades do herdeiro⁄alimentante, sempre dentro das forças da herança. Extintos os bens herdados, extingue-se a pensão devida com base no art. 1.700, assim como se extinguiria eventual legado de alimentos fixado com base no art. 1.920 do Código Civil de 2002.
No caso ora em exame, a alimentada não é herdeira, de forma que não vejo coerência no entendimento adotado pelo acórdão recorrido que, por um lado, com base no art. 1.700 do Código Civil, entende que a obrigação alimentar transmite-se automaticamente após o óbito, mas por outro, elege a data da partilha (no caso, ato extrajudicial potestativo das herdeiras⁄devedoras) como término da obrigação transmitida em favor de não herdeiro, estranho à partilha.
Não há notícias de parcelas vencidas anteriores ao óbito, e, portanto, extinguiu-se a obrigação alimentar de responsabilidade do falecido ou do espólio. Seria, em tese, possível o ajuizamento de nova ação pela alimentada contra os herdeiros, caso não tenha ela recursos suficientes para sua subsistência e nem condição de obtê-los mediante seu trabalho ou de seus próprios parentes."
 

A preclara Ministra NANCY ANDRIGHI, por sua vez, abriu a divergência ante os seguintes fundamentos:

 
"Cinge-se o debate em se discutir os limites da transmissão da obrigação de prestar alimentos, após o óbito do alimentante e, por conseguinte, o alcance do art. 1700 do CC-02, empregado pelo Tribunal de origem para determinar a continuidade do pagamento de pensão alimentícia, obrigação originária do de cujus, até o término do inventário respectivo.
01. Inicialmente, importa para uma melhor compreensão do debate aqui analisado, fixar que os alimentos pagos pelo de cujus, à recorrida, eram devidos em razão de acordo firmado ao fim de união estável, no ano de 2004, tendo o óbito do alimentante ocorrido em 2008.
02. Esclarecida a janela temporal do pagamento de alimentos à recorrida, e volvendo o debate que ora se trava, vê-se que a solução da controvérsia, trazida em recurso especial, passa, primeiramente, pela pacífica assertiva de que a obrigação alimentar é personalíssima, fato que irá parametrizar os limites interpretativos de toda a legislação de regência, incluindo-se, o art. 1700 do CC-02, objeto deste recurso especial.
03. Releva, nesse sentido, trazer uma reafirmação dessa tese nas palavras de Rolf Madaleno, quando discorre sobre as características da obrigação alimentar:
Em primeiro lugar, é personalíssimo enquanto pessoal é o vínculo familiar dentre o devedor e credor que compõe os polos da relação obrigacional. O crédito e a dívida são inseparáveis da pessoa, porque estão baseados em determinada qualidade que não é transmissível. (MADALENO, Rolf. in Curso de Direito de Família. 14ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011. Pag. 840⁄841).
 
04. Nessa estreita senda deve ser lido comando do art. 1.700 do CC-02, que prevê a transmissão da obrigação de prestar alimentos, por ser uníssona a doutrina no sentido de que a obrigação alimentar é fruto da solidariedade familiar, não devendo, portanto, vincular pessoas fora desse contexto.
05. A morte do alimentante traz consigo a extinção da personalíssima obrigação alimentar, pois não se pode conceber que um vínculo alimentar decorrente de uma já desfeita solidariedade entre o falecido-alimentante e a alimentada, além de perdurar por cerca de quatro anos após o término do relacionamento, ainda lance seus efeitos para além da vida do alimentante, deitando garras no patrimônio dos herdeiros, filhos do de cujus.
06. E aqui não causa espécie a limitação proposta no voto da Relatora, de que os alimentos respeitem os limites da herança, porque ainda assim, é o patrimônio de seus enteados (adquirido desde o óbito por força da saisine) que será agredido. Aliás, o que se transmite no disposto do artigo 1.700 do CC-02, é a dívida existente antes do óbito e nunca o dever ou a obrigação de pagar alimentos, pois personalíssima.
07. Não há vínculos entre os herdeiros do falecido e a ex-companheira que possibilite se protrair, indefinidamente, o pagamento dos alimentos a esta, fenecendo, assim qualquer tentativa de transmitir a obrigação de prestação de alimentos, após a morte do alimentante.
08. Enfatize-se que quando o de cujus faleceu - 2008 - a união estável já estava desfeita há mais de 05 anos (desde o final de 2002), e os alimentos eram pagos há quatro anos, por força de acordo firmado pelos ex-companheiros.
09. O que há, e isso é inegável, até mesmo por força do expresso texto de lei, é a transmissão da dívida decorrente do débito alimentar, que por ventura não tenha sido pago pelo alimentante, enquanto em vida.
10. Essa limitação de efeitos não torna inócuo o texto legal que preconiza a transmissão, pois vem se dando, no âmbito do STJ, interpretação que embora lhe outorgue efetividade, não descura dos comandos macros que regem as relações das obrigações alimentares.
11. Daí a existência de precedentes que limitam a prestação dos alimentos, pelo espólio, à circunstância do alimentado também ser herdeiro, pois aqui existe o grave risco de que demoras, naturais ou provocadas, no curso do inventário, levem o alimentado à carência material inaceitável.
(...)
12. Qualquer interpretação diversa, apesar de gerar mais efetividade ao art. 1.700 do CC-02, vergaria de maneira inaceitável os princípios que regem a obrigação alimentar, dando ensejo à criação de situações teratológicas, como o de viúvas pagando alimentos para ex-companheiras do de cujus, ou verdadeiro digladiar entre alimentados que também são herdeiros, todos pedindo, reciprocamente, alimentos.
13. Assim, admite-se a transmissão, apenas e tão somente quando o alimentado também seja herdeiro, e ainda assim enquanto perdurar o inventário, já se tratando aqui de uma excepcionalidade, porquanto extinta a obrigação alimentar desde o óbito.
14. A partir de então - no caso de herdeiros - ou a partir do óbito do alimentante - para aqueles que não o sejam -, fica extinto o direito de perceber alimentos com base no art. 1694 do CC-02, ressaltando-se que os valores não pagos pelo alimentante, podem ser cobrados do espólio.
15. Dessa forma, tem-se que o Tribunal dissentiu do entendimento já firmado pelo STJ, razão porque, merece reforma.
16. Assim, pedindo vênia à Ministra Relatora, dou provimento ao recurso especial para reconhecer que a obrigação de alimentos extingue-se com o óbito do alimentante, sendo ônus do espólio pagar apenas eventual débito alimentar não quitado pelo de cujus, ressalvando-se a irrepetibilidade dos valores já percebidos pela recorrida."
 

Com a devida vênia da eminente Ministra Relatora, acompanho a divergência inaugurada pela eminente Ministra Nancy Andrighi.

A melhor interpretação a ser conferida ao art. 1.700 do CC⁄2002 não se pode dissociar da principal característica da obrigação de prestar alimentos e da própria razão filosófica ou moral dessa obrigação, quais sejam, sua natureza personalíssima e o vínculo decorrente de solidariedade familiar (conforme o art. 1.694 do CC⁄2002).

Partindo dessa premissa, a primeira conclusão que se extrai é no sentido de que o falecimento do devedor de alimentos tem o condão de extinguir a obrigação alimentar, sem possibilidade de que os herdeiros do alimentante passem a ser responsáveis por prestar alimentos a pessoa com quem não possuem vínculo de natureza familiar. Não há falar, portanto, em transmissibilidade da obrigação alimentar aos herdeiros do devedor, pelo menos no tocante a parcelas vincendas.

De outro lado, a adoção da tese em sentido contrário, de transmissão para os herdeiros da obrigação de pagar a pensão devida pelo falecido, ainda que não automaticamente, como propõe a eminente Relatora, poderia conduzir a "situações teratológicas", nas palavras da ilustre Ministra Nancy Andrighi, "como a de viúvas pagando alimentos a ex-companheiras dos de cujus", ou de profunda indignidade, como no caso de filhos de casamento anterior desfeito serem obrigados a alimentar a ex-companheira do falecido, o que não parece ser a intenção do legislador, além de não se mostrar, com a devida vênia, razoável e compatível com o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.

Nesse contexto, a leitura a ser feita do art. 1.700 do Código Civil, quanto a alimentado sem vínculo de parentesco com o herdeiro, diz respeito somente a débito alimentar vencido, não pago pelo devedor originário antes do seu óbito. Assim, nos termos do citado dispositivo legal, apenas a dívida oriunda de parcelas vencidas antes do falecimento do alimentante pode ser transmitida aos herdeiros e, obviamente, dentro das forças da herança.

Nesse sentido, confira-se o seguinte precedente da eg. Quarta Turma desta Corte, no qual acompanhei o eminente Ministro Relator:

 
"AÇÃO DE ALIMENTOS. RECURSO ESPECIAL. EXAME DE MATÉRIA CONSTITUCIONAL. INVIABILIDADE. OMISSÃO E CONTRADIÇÃO. INEXISTÊNCIA. AÇÃO DE ALIMENTOS PROPOSTA POR DETENTA, EM FACE DOS ESPÓLIOS DE SEUS GENITORES. INEXISTÊNCIA DE ACORDO OU SENTENÇA FIXANDO ALIMENTOS POR OCASIÃO DO FALECIMENTO DO AUTOR DA HERANÇA. ILEGITIMIDADE PASSIVA DO ESPÓLIO.CONCESSÃO DE ALIMENTOS A MAIOR DE IDADE, SEM PROBLEMA FÍSICO OU MENTAL, OU QUE, POR OCASIÃO DO ATINGIMENTO DA MAIORIDADE ATÉ O AJUIZAMENTO DA AÇÃO DE ALIMENTOS, ESTIVESSE REGULAMENTE CURSANDO ENSINO TÉCNICO OU SUPERIOR. DESCABIMENTO. ALIMENTOS. CONCESSÃO, SEM CONSTATAÇÃO OU PRESUNÇÃO LEGAL DE NECESSIDADE, A QUEM PODE PROVÊ-LOS POR ESFORÇO PRÓPRIO. IMPOSSIBILIDADE. A LEI DE EXECUÇÃO PENAL ESTABELECE O DIREITO⁄DEVER DO PRESO AO TRABALHO REMUNERADO.
1. Embora seja dever de todo magistrado velar a Constituição Federal, para que se evite supressão de competência do egrégio STF, não se admite apreciação, em sede de recurso especial, de matéria constitucional.
2. "Os alimentos ostentam caráter personalíssimo, por isso, no que tange à obrigação alimentar, não há falar em transmissão do dever jurídico (em abstrato) de prestá-los". (REsp 1130742⁄DF, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 04⁄12⁄2012, DJe 17⁄12⁄2012)
3. Assim, embora a jurisprudência desta Corte Superior admita, nos termos do artigo 23 da Lei do Divórcio e 1.700 do Código Civil, que, caso exista obrigação alimentar preestabelecida por acordo ou sentença - por ocasião do falecimento do autor da herança -, possa ser ajuizada ação de alimentos em face do Espólio - de modo que o alimentando não fique à mercê do encerramento do inventário para que perceba as verbas alimentares -,  não há cogitar em transmissão do dever jurídico de prestar alimentos, em razão de seu caráter personalíssimo e, portanto, intransmissível. Precedentes das duas Turmas que compõem a Segunda Seção, mas com ressalvas por parte de integrantes da Quarta Turma.
4. Igualmente, ainda que não fosse ação de alimentos ajuizada em face de espólio, foi manejada quando a autora já havia alcançado a maioridade e extinto o poder familiar. Assim, não há cogitar em concessão dos alimentos vindicados, pois não há presunção de dependência da recorrente, nos moldes dos precedentes desta Corte Superior.
5. O art. 1.695 do CC⁄2002 dispõe que "[s]ão devidos os alimentos quando quem os pretende não tem bens suficientes, nem pode prover, pelo seu trabalho, à própria mantença". Nesse passo, o preso tem direito à alimentação suficiente, assistência material, saúde e ao vestuário, enquanto que a concessão de alimentos demanda a constatação ou presunção legal de necessidade daquele que os pleiteia; todavia, na exordial, em nenhum momento a autora afirma ter buscado trabalhar durante o período em que se encontra reclusa, não obstante a atribuição de trabalho e sua remuneração seja, conforme disposições da Lei de Execução Penal, simultaneamente um direito e um dever do preso (arts. 41, II e 39, V, c⁄c 50, VI, da LEP).
6. Recurso especial não provido."
(REsp 1.337.862⁄SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 11⁄2⁄2014, DJe de 20⁄3⁄2014)
 

Com essas considerações, pedindo vênia à eminente Ministra Relatora, acompanho o bem lançado voto da ilustre Ministra Nancy Andrighi, dando provimento ao recurso especial.

É como voto.