RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS.
RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS. TRANSPORTE AÉREO DE PASSAGEIROS. AQUISIÇÃO DE PASSAGENS DO TIPO IDA E VOLTA. CANCELAMENTO AUTOMÁTICO E UNILATERAL DO TRECHO DE VOLTA, TENDO EM VISTA A NÃO UTILIZAÇÃO DO BILHETE DE IDA (NO SHOW). CONDUTA ABUSIVA DA TRANSPORTADORA. VIOLAÇÃO DOS ARTS. 51, IV, XI, XV, E § 1º, I, II E III, E 39, I, DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. RESSARCIMENTO DAS DESPESAS EFETUADAS COM A AQUISIÇÃO DAS NOVAS PASSAGENS (DANOS MATERIAIS). FATOS QUE ULTRAPASSARAM O MERO ABORRECIMENTO COTIDIANO. DANOS MORAIS CONFIGURADOS. RECURSO ESPECIAL PROVIDO.
1. A controvérsia instaurada neste feito consiste em saber se configura conduta abusiva o cancelamento automático e unilateral, por parte da empresa aérea, do trecho de volta do passageiro que adquiriu as passagens do tipo ida e volta, em razão de não ter utilizado o trecho inicial.
2. Inicialmente, não há qualquer dúvida que a relação jurídica travada entre as partes é nitidamente de consumo, tendo em vista que o adquirente da passagem amolda-se ao conceito de consumidor, como destinatário final, enquanto a empresa caracteriza-se como fornecedora do serviço de transporte aéreo de passageiros, nos termos dos arts. 2º e 3º do Código de Defesa do Consumidor - CDC.
Dessa forma, o caso em julgamento deve ser analisado sob a ótica da legislação consumerista, e não sob um viés eminentemente privado, como feito pelas instâncias ordinárias.
3. Dentre os diversos mecanismos de proteção ao consumidor estabelecidos pela lei, a fim de equalizar a relação faticamente desigual em comparação ao fornecedor, destacam-se os arts. 39 e 51 do CDC, que, com base nos princípios da função social do contrato e da boa-fé objetiva, estabelecem, em rol exemplificativo, as hipóteses, respectivamente, das chamadas práticas abusivas, vedadas pelo ordenamento jurídico, e das cláusulas abusivas, consideradas nulas de pleno direito em contratos de consumo, configurando nítida mitigação da força obrigatória dos contratos (pacta sunt servanda).
4. A previsão de cancelamento unilateral da passagem de volta, em razão do não comparecimento para embarque no trecho de ida (no show), configura prática rechaçada pelo Código de Defesa do Consumidor, nos termos dos referidos dispositivos legais, cabendo ao Poder Judiciário o restabelecimento do necessário equilíbrio contratual.
4.1. Com efeito, obrigar o consumidor a adquirir nova passagem aérea para efetuar a viagem no mesmo trecho e hora marcados, a despeito de já ter efetuado o pagamento, configura obrigação abusiva, pois coloca o consumidor em desvantagem exagerada, sendo, ainda, incompatível com a boa-fé objetiva, que deve reger as relações contratuais (CDC, art. 51, IV). Ademais, a referida prática também configura a chamada "venda casada", pois condiciona o fornecimento do serviço de transporte aéreo do "trecho de volta" à utilização do "trecho de ida" (CDC, art. 39, I).
4.2. Tratando-se de relação consumerista, a força obrigatória do contrato é mitigada, não podendo o fornecedor de produtos e serviços, a pretexto de maximização do lucro, adotar prática abusiva ou excessivamente onerosa à parte mais vulnerável na relação, o consumidor.
5. Tal o quadro delineado, é de rigor a procedência, em parte, dos pedidos formulados na ação indenizatória a fim de condenar a recorrida ao ressarcimento dos valores gastos com a aquisição da segunda passagem de volta (danos materiais), bem como ao pagamento de indenização por danos morais, fixados no valor de R$ 5.000,00 (cinco mil reais), para cada autor.
6. Recurso especial provido.
(REsp 1699780/SP, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, TERCEIRA TURMA, julgado em 11/09/2018, DJe 17/09/2018)
JURISPRUDÊNCIA NA ÍNTEGRA
O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO BELLIZZE:
William Oliver Topal e Luciane Fontana da Silva ajuizaram ação de indenização por danos materiais e morais contra Gol Linhas Aéreas Inteligentes S.A., alegando, em síntese, que adquiriram, por meio do site "decolar.com", passagens aéreas "partindo de São Paulo (GRU), em 30.12.2015, às 07h20min, tendo como destino final a cidade de Brasília (BSB), com vôo de volta para 03.01.2016, às 13h10min. Afirmaram que no momento da reserva, por um lapso, selecionaram o voo de ida com saída do aeroporto de Viracopos (VCP), o que de fato era inviável, razão pela qual adquiriram novas passagens de ida com embarque pelo aeroporto de Guarulhos. Alegaram que, por ocasião da volta, ao realizarem o check-in, foram informados de que não poderiam embarcar, uma vez que suas reservas de volta haviam sido canceladas por motivo de no show. Em virtude disso, foram obrigados a adquirir nova passagem de volta, o que se assemelha à prática de venda casada. À vista de tais fatos, requereram a condenação da ré à restituição dos danos materiais, no valor de R$ 607,46, bem como ao pagamento de indenização no valor de R$ 10.000,00 para cada".
O Juízo de primeiro grau julgou improcedente o pedido.
Em apelação dos autores, o Tribunal de Justiça de São Paulo negou provimento ao recurso, nos termos da seguinte ementa:
Daí o recurso especial, em que William Oliver Topal e Luciane Fontana da Silva alegam que o acórdão recorrido violou os arts. 186 e 927 do Código Civil, bem como os arts. 6, VIII, 14, 20, II, 39, I, e 51, IV, XI, e § 1º, II e III, todos do Código de Defesa do Consumidor.
Asseveram que a prática da recorrida de condicionar a passagem de volta à de ida ao consumidor configura a chamada venda casada, prática abusiva expressamente vedada pelo CDC.
Buscam, assim, o provimento do recurso especial para que seja julgada procedente a ação, condenando a recorrida ao pagamento dos danos materiais e morais, bem como honorários advocatícios fixados em 20% sobre o valor da condenação.
É o relatório.
O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO BELLIZZE (RELATOR):
A controvérsia instaurada neste feito consiste em saber se configura conduta abusiva o cancelamento automático e unilateral, por parte da empresa aérea, do trecho de volta do passageiro que adquiriu as passagens do tipo ida e volta, em razão de não ter utilizado o trecho inicial (no show).
O Juízo de primeiro grau julgou improcedente o pedido da ação indenizatória, com base nos seguintes fundamentos:
O Tribunal de origem, por sua vez, manteve a sentença, aduzindo o seguinte:
Não obstante os fundamentos declinados pelas instâncias ordinárias, entendo que assiste razão aos recorrentes.
De início, é preciso pontuar que não há dúvida, e nem há qualquer insurgência quanto à esta questão, que a relação jurídica travada entre as partes é nitidamente de consumo, tendo em vista que o adquirente da passagem amolda-se ao conceito de consumidor, como destinatário final, enquanto a empresa caracteriza-se como fornecedora do serviço de transporte aéreo de passageiros, nos termos dos arts. 2º e 3º do Código de Defesa do Consumidor - CDC.
Dessa forma, o caso em julgamento deve ser analisado sob a ótica da legislação consumerista, e não sob um viés eminentemente privado, sobretudo no que concerne à chamada pacta sunt servanda, como feito pelas instâncias ordinárias.
A propósito, acerca da suposta desigualdade de tratamento em razão da proteção legal conferida ao consumidor, esclarece Bruno Miragem:
Dentre os diversos mecanismos de proteção ao consumidor estabelecidos pela lei, a fim de equalizar a relação faticamente desigual em comparação ao fornecedor, destaca-se o art. 51 do CDC que, com base nos princípios da função social do contrato e da boa-fé objetiva, estabelece, em rol exemplificativo, as hipóteses das chamadas cláusulas abusivas, consideradas nulas de pleno direito em contratos de consumo.
As cláusulas abusivas consubstanciam, na verdade, um abuso no direito de contratar, diante da vulnerabilidade de uma das partes na relação (consumidor), configurando o aludido art. 51 do Código Consumerista "uma das mais importantes mitigações da força obrigatória da convenção (pacta sunt servanda) na realidade brasileira, o que reduz substancialmente o poder das partes, em situação de profundo intervencionismo ou dirigismo contratual" (TARTUCE, Flávio; NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito do Consumidor: direito material e processual. 7 ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2018, p. 364).
A propósito, confira-se o teor do referido dispositivo legal, na parte que interessa ao presente julgamento:
Além disso, o art. 39 do CDC também estabelece, em rol exemplificativo, algumas situações de práticas abusivas, as quais são vedadas ao fornecedor de produtos ou serviços.
Dentre elas, destaca-se a que proíbe a chamada "venda casada", disposta no inciso I do referido dispositivo legal, cuja redação é a seguinte:
No caso, a previsão de cancelamento unilateral da passagem de volta, em razão do não comparecimento para embarque no trecho de ida (no show), configura prática rechaçada pelo Código de Defesa do Consumidor, nos termos dos referidos dispositivos legais acima transcritos, devendo o Poder Judiciário restabelecer o necessário equilíbrio contratual.
Com efeito, obrigar o consumidor a adquirir nova passagem aérea para efetuar a viagem no mesmo trecho e hora marcados, a despeito de já ter efetuado o pagamento, configura obrigação abusiva, pois coloca o consumidor em desvantagem exagerada, sendo, ainda, incompatível com a boa-fé objetiva, que deve reger as relações contratuais (CDC, art. 51, IV).
Ademais, a referida cláusula contratual autoriza o fornecedor a cancelar o contrato unilateralmente, sem que igual direito seja conferido ao consumidor, incidindo na hipótese do art. 51, XI, do CDC, bem como configura a chamada "venda casada", pois condiciona o fornecimento do serviço de transporte aéreo do "trecho de volta" à utilização do "trecho de ida" (CDC, art. 39, I).
Sob qualquer ângulo analisado, é de se concluir que a prática de cancelar a passagem de volta, em razão da não utilização do trecho de ida, está em desacordo com o sistema de proteção ao consumidor, de envergadura constitucional, máxime porque a própria Carta Magna estabelece como um dos princípios da ordem econômica justamente a defesa do consumidor, a teor do que dispõe o art. 170, inciso V, da CF:
É de se observar que a referida prática, habitualmente adotada pelas empresas de transporte aéreo de passageiros, não tem qualquer razão técnico-jurídica, sendo tal medida justificada pela ora recorrida apenas por estar prevista em contrato, cuja finalidade é tão somente a maximização do lucro da empresa, pois permite a dupla venda do assento referente ao "trecho de volta".
No particular, vale ressaltar que não há qualquer óbice em se adotar medidas a fim de incrementar o lucro empresarial. Todavia, dentro de uma relação de consumo, há certos limites legais a serem observados, mormente quando houver severos prejuízos ao consumidor, como na espécie.
Conforme já ressaltado anteriormente, tratando-se de relação consumerista, a força obrigatória do contrato (pacta sunt servanda) é mitigada, não podendo o fornecedor de produtos e serviços, a pretexto de maximização do lucro, adotar prática abusiva ou excessivamente onerosa à parte mais vulnerável na relação, o consumidor.
Outro ponto que merece destaque é o fato de que, ainda que a aquisição dos bilhetes de "ida e volta" seja eventualmente mais barata, não se pode olvidar que são feitas duas compras, isto é, uma passagem de "ida" e uma passagem de "volta", tanto que os valores são mais elevados, se comparados à compra de apenas um trecho.
Dessa forma, se o consumidor, por qualquer motivo, não comparecer ao embarque no trecho de ida, deverá a empresa aérea adotar as medidas cabíveis quanto à aplicação de multa ou restrições ao valor do reembolso em relação ao respectivo bilhete, não havendo, porém, qualquer repercussão no trecho de volta, caso o consumidor não opte pelo cancelamento.
Em recente julgamento de um caso quase idêntico ao presente, a Quarta Turma desta Corte Superior, por votação unânime, entendeu que o cancelamento da viagem de volta, em razão do não comparecimento do passageiro para o trecho de ida (no show), configura conduta abusiva da empresa aérea, conforme se verifica da ementa do referido julgado:
Dentre os diversos e substanciosos fundamentos consignados no voto do eminente Ministro Relator do referido recurso especial, destaco o seguinte trecho acerca das diversas penalidades impostas ao consumidor em razão do não comparecimento para embarque no trecho de ida, reforçando a manifesta falta de razoabilidade na respectiva prática comercial:
Por essas razões, é de se reconhecer o ato ilícito cometido pela ré, a ensejar a procedência da ação indenizatória.
Ressalta-se, ainda, que a referida prática comercial abusiva ultrapassa o mero aborrecimento cotidiano, violando direitos ligados à tutela da dignidade humana, porquanto acarreta severas frustrações e angústias aos consumidores, os quais, sem qualquer garantia de êxito e em cidade diversa da de seu domicílio, viram-se obrigados a comprar nova passagem de volta, caracterizando-se, assim, a ocorrência de danos morais.
Em relação ao quantum devido, diante das circunstâncias do caso concreto, sobretudo porque os autores conseguiram embarcar no mesmo dia previsto para o retorno, entendo razoável o valor de R$ 5.000,00 (cinco mil reais), para cada autor.
Os danos materiais, por sua vez, correspondem ao preço da segunda passagem emitida referente ao trecho de volta, fixado em R$ 607,46 (seiscentos e sete reais e quarenta e seis centavos).
Ante o exposto, dou provimento ao recurso especial para julgar parcialmente procedentes os pedidos formulados na ação de indenização, condenando a Gol Linhas Aéreas Inteligentes S.A. ao pagamento do valor de R$ 607,46 (seiscentos e sete reais e quarenta e seis centavos), a título de danos materiais, corrigido desde a data do desembolso e com juros de mora a partir da citação, bem como ao pagamento de R$ 5.000,00 (cinco mil reais), para cada autor, corrigido a partir da data deste julgamento e também com juros moratórios desde a citação.
Fica a recorrida condenada às custas processuais e honorários advocatícios, os quais fixo em 15% sobre o valor atualizado da condenação.
É o voto