Jurisprudência - STJ

RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS.

Por: Equipe Petições

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RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS. TRANSPORTE AÉREO DE PASSAGEIROS. AQUISIÇÃO DE PASSAGENS DO TIPO IDA E VOLTA. CANCELAMENTO AUTOMÁTICO E UNILATERAL DO TRECHO DE VOLTA, TENDO EM VISTA A NÃO UTILIZAÇÃO DO BILHETE DE IDA (NO SHOW). CONDUTA ABUSIVA DA TRANSPORTADORA. VIOLAÇÃO DOS ARTS. 51, IV, XI, XV, E § 1º, I, II E III, E 39, I, DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. RESSARCIMENTO DAS DESPESAS EFETUADAS COM A AQUISIÇÃO DAS NOVAS PASSAGENS (DANOS MATERIAIS). FATOS QUE ULTRAPASSARAM O MERO ABORRECIMENTO COTIDIANO. DANOS MORAIS CONFIGURADOS. RECURSO ESPECIAL PROVIDO.

1. A controvérsia instaurada neste feito consiste em saber se configura conduta abusiva o cancelamento automático e unilateral, por parte da empresa aérea, do trecho de volta do passageiro que adquiriu as passagens do tipo ida e volta, em razão de não ter utilizado o trecho inicial.

2. Inicialmente, não há qualquer dúvida que a relação jurídica travada entre as partes é nitidamente de consumo, tendo em vista que o adquirente da passagem amolda-se ao conceito de consumidor, como destinatário final, enquanto a empresa caracteriza-se como fornecedora do serviço de transporte aéreo de passageiros, nos termos dos arts. 2º e 3º do Código de Defesa do Consumidor - CDC.

Dessa forma, o caso em julgamento deve ser analisado sob a ótica da legislação consumerista, e não sob um viés eminentemente privado, como feito pelas instâncias ordinárias.

3. Dentre os diversos mecanismos de proteção ao consumidor estabelecidos pela lei, a fim de equalizar a relação faticamente desigual em comparação ao fornecedor, destacam-se os arts. 39 e 51 do CDC, que, com base nos princípios da função social do contrato e da boa-fé objetiva, estabelecem, em rol exemplificativo, as hipóteses, respectivamente, das chamadas práticas abusivas, vedadas pelo ordenamento jurídico, e das cláusulas abusivas, consideradas nulas de pleno direito em contratos de consumo, configurando nítida mitigação da força obrigatória dos contratos (pacta sunt servanda).

4. A previsão de cancelamento unilateral da passagem de volta, em razão do não comparecimento para embarque no trecho de ida (no show), configura prática rechaçada pelo Código de Defesa do Consumidor, nos termos dos referidos dispositivos legais, cabendo ao Poder Judiciário o restabelecimento do necessário equilíbrio contratual.

4.1. Com efeito, obrigar o consumidor a adquirir nova passagem aérea para efetuar a viagem no mesmo trecho e hora marcados, a despeito de já ter efetuado o pagamento, configura obrigação abusiva, pois coloca o consumidor em desvantagem exagerada, sendo, ainda, incompatível com a boa-fé objetiva, que deve reger as relações contratuais (CDC, art. 51, IV). Ademais, a referida prática também configura a chamada "venda casada", pois condiciona o fornecimento do serviço de transporte aéreo do "trecho de volta" à utilização do "trecho de ida" (CDC, art. 39, I).

4.2. Tratando-se de relação consumerista, a força obrigatória do contrato é mitigada, não podendo o fornecedor de produtos e serviços, a pretexto de maximização do lucro, adotar prática abusiva ou excessivamente onerosa à parte mais vulnerável na relação, o consumidor.

5. Tal o quadro delineado, é de rigor a procedência, em parte, dos pedidos formulados na ação indenizatória a fim de condenar a recorrida ao ressarcimento dos valores gastos com a aquisição da segunda passagem de volta (danos materiais), bem como ao pagamento de indenização por danos morais, fixados no valor de R$ 5.000,00 (cinco mil reais), para cada autor.

6. Recurso especial provido.

(REsp 1699780/SP, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, TERCEIRA TURMA, julgado em 11/09/2018, DJe 17/09/2018)

 

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JURISPRUDÊNCIA NA ÍNTEGRA

RECURSO ESPECIAL Nº 1.699.780 - SP (2017⁄0238942-0)
 
RELATÓRIO
 

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO BELLIZZE:

William Oliver Topal e Luciane Fontana da Silva ajuizaram ação de indenização por danos materiais e morais contra Gol Linhas Aéreas Inteligentes S.A., alegando, em síntese, que adquiriram, por meio do site "decolar.com", passagens aéreas "partindo de São Paulo (GRU), em 30.12.2015, às 07h20min, tendo como destino final a cidade de Brasília (BSB), com vôo de volta para 03.01.2016, às 13h10min. Afirmaram que no momento da reserva, por um lapso, selecionaram o voo de ida com saída do aeroporto de Viracopos (VCP), o que de fato era inviável, razão pela qual adquiriram novas passagens de ida com embarque pelo aeroporto de Guarulhos. Alegaram que, por ocasião da volta, ao realizarem o check-in, foram informados de que não poderiam embarcar, uma vez que suas reservas de volta haviam sido canceladas por motivo de no show. Em virtude disso, foram obrigados a adquirir nova passagem de volta, o que se assemelha à prática de venda casada. À vista de tais fatos, requereram a condenação da ré à restituição dos danos materiais, no valor de R$ 607,46, bem como ao pagamento de indenização no valor de R$ 10.000,00 para cada".

O Juízo de primeiro grau julgou improcedente o pedido.

Em apelação dos autores, o Tribunal de Justiça de São Paulo negou provimento ao recurso, nos termos da seguinte ementa:

APELAÇÃO - Indenizatória - Danos materiais e morais - Transporte aéreo - Autores que realizaram compra de passagens aéreas de ida e volta via internet, em pacote promocional - Requerentes que admitiram ter cometido equívoco na realização da compra, pois selecionaram ida partindo do Aeroporto de Viracopos (Campinas-SP) para Brasília, vindo a adquirir novas passagens de ida, agora partindo de Guarulhos-SP, com destino a Brasília - Autores que pretenderam retornar com a utilização das passagens de volta, contratadas no pacote inicialmente avençado e que teria ocorrido o equívoco quanto aos aeroportos de partida, o que ensejou o cancelamento automático do vôo de retorno - Inexistência de abusividade na espécie, venda casada ou qualquer violação às disposições do Código de Defesa do Consumidor - Autores que optaram pela promoção ofertada, com preços diferenciados, estando plenamente cientes das condições do negócio quanto à obrigatoriedade de utilização dos trechos, como contratado, bem como, quanto ao cancelamento automático na hipótese de não utilização nos termos avençados - Improcedência bem decretada - Sentença mantida - Recurso não provido
 
 

Daí o recurso especial, em que William Oliver Topal e Luciane Fontana da Silva alegam que o acórdão recorrido violou os arts. 186 e 927 do Código Civil, bem como os arts. 6, VIII, 14, 20, II, 39, I, e 51, IV, XI, e § 1º, II e III, todos do Código de Defesa do Consumidor.

Asseveram que a prática da recorrida de condicionar a passagem de volta à de ida ao consumidor configura a chamada venda casada, prática abusiva expressamente vedada pelo CDC.

Buscam, assim, o provimento do recurso especial para que seja julgada procedente a ação, condenando a recorrida ao pagamento dos danos materiais e morais, bem como honorários advocatícios fixados em 20% sobre o valor da condenação.

É o relatório.

 
RECURSO ESPECIAL Nº 1.699.780 - SP (2017⁄0238942-0)
 
VOTO
 

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO BELLIZZE (RELATOR):

A controvérsia instaurada neste feito consiste em saber se configura conduta abusiva o cancelamento automático e unilateral, por parte da empresa aérea, do trecho de volta do passageiro que adquiriu as passagens do tipo ida e volta, em razão de não ter utilizado o trecho inicial (no show).

O Juízo de primeiro grau julgou improcedente o pedido da ação indenizatória, com base nos seguintes fundamentos:

Da análise da inicial, depreende-se que os autores adquiriram passagens aéreas com voo de ida partindo do aeroporto de Viracopos (VCP), em Campinas, com destino ao aeroporto de Brasília (BSB), tendo sido impossibilitados de embarcar no voo de volta em razão de no show.
 
Afirmam que o não comparecimento ao voo de ida ocorreu porque cometeram equívoco quando da aquisição das passagens, uma vez que selecionaram como ponto de partida o aeroporto de Viracopos (VCP), quando, na verdade, deveriam ter selecionado o aeroporto internacional de Guarulhos (GRU). Esclarecem que como o voo de volta havia sido adquirido de modo correto, com desembarque em Guarulhos, limitaram-se a adquirir novas passagens de ida, deixando de utilizar os bilhetes que haviam comprado anteriormente.
 
Aduzem que a requerida, em virtude da ausência de embarque no voo de ida, agiu de modo abusivo ao exigir que novos bilhetes fossem adquiridos, motivo pelo qual deve ser condenada ao pagamento de indenização pelos danos materiais e morais suportados.
 
Em contestação, a ré não refutou as alegações dos autores no sentido de que teria condicionado o embarque ao pagamento de novos valores. Pelo contrário: admitiu que procedeu de tal modo, mas tão somente porque a conduta estava prevista no contrato firmado entre as partes.
 
Pois bem. Os documentos carreados aos autos comprovam que os autores estavam cientes da obrigatoriedade de utilização de ambos os trechos, sob pena de cancelamento do voo de retorno (vide folhas 116⁄118). Neste ponto, aliás, esclareço que embora o documento tenha sido produzido de modo unilateral, os autores não negaram o recebimento da cópia do contrato e tampouco afirmaram que as condições foram omitidas pela ré.
 
A condição imposta pela ré se justifica porque os bilhetes foram adquiridos com tarifas promocionais, contendo expressa disposição no sentido de que ida e volta eram obrigatórias. Sob essa perspectiva, uma vez que as condições contratuais são expostas em momento anterior à concretização da operação, presume-se que os adquirentes tenham lido e acordado com todas as cláusulas dispostas no instrumento.
 
Vale ressaltar, ainda, que, uma vez lidas as cláusulas contratuais, poderiam os autores, caso não quisessem contratar voos com embarques atrelados, optar pela aquisição de bilhetes de modo apartado. Ou seja, no momento da leitura do contrato, ao discordar da cláusula que condicionava o comparecimento em ambos os itinerários, deveriam os requerentes ter procedido ao cancelamento daquela operação e adquirido bilhetes mediante duas contratações distintas, sem preços promocionais.
 
Nesse sentido, uma vez que a possibilidade de compra das passagens de modo separado, sem necessidade de comparecimento obrigatório em ambos os voos, estava ao alcance dos requerentes, que, por mera liberalidade, optaram por contratar os serviços promocionais, configurada a culpa exclusiva dos consumidores no transtorno por eles enfrentado.
 
A esse respeito, veja-se:
 
Restituição de valores c.c. indenização por danos morais - Prestação de serviços de intermediação na compra de passagens aéreas - Perda de voo - Atraso dos passageiros, configurando no-show - Culpa exclusiva do consumidor - Mantida apenas condenação de devolução de valor de passagem aérea cujo cancelamento foi requerido antecipadamente - Parcial procedência - Apelo parcialmente provido. (Relator(a): Silvia Rocha; Comarca: São Paulo; Órgão julgador: 29ª Câmara de Direito Privado; Data do julgamento:
08⁄06⁄2016)
 
Assim, à vista de toda a fundamentação exposta, ficam claramente vencidas as alegações de infração do Código de Defesa do Consumidor, mormente no que concerne à suposta exigência de vantagem manifestamente excessiva e de configuração de venda casada.
 
Logo, a improcedência, seja a título de danos materiais ou a título de danos morais, é medida de rigor, pois ausente um dos elementos configuradores da responsabilidade civil: culpa ou dolo do prestador de serviço.
 
 

O Tribunal de origem, por sua vez, manteve a sentença, aduzindo o seguinte:

 
Analisando-se os autos, como bem consignado pela r. sentença, em não tendo os requerentes negado que receberam cópia do contrato ou de que as condições do mesmo teriam sido omitidas pela requerida, verifica-se que os autores não negaram, portanto, que tinham ciência de que consoante o documento de fls. 116⁄118, havia a utilização de ambos os trechos, sob pena de cancelamento automático do voo de retorno. Confira-se (fls. 116, item 1): '(...) Todos os trechos adquiridos numa mesma reserva passam a compor um único itinerário, que deve ser integralmente utilizado conforme programado, incluindo a ordem dos voos. Qualquer alteração acarretará nova precificação do itinerário. Se a passagem for de Ida ou Ida e Volta ou Ida e Volta Obrigatória, lembre-se que para embarcar no voo de retorno, o primeiro voo deve ter sido utilizado. Caso não seja utilizado o primeiro voo, o voo de retorno será automaticamente cancelado. (...)' e 'Os trechos reservados subsequentes ao trecho não utilizado serão imediatamente cancelados.'
 
Não se verifica qualquer abusividade na hipótese ou vulneração às disposições do Código de Defesa do Consumidor, seja por alegação de vantagem excessiva ou de realização de venda casada.
 
Isto porque, em havendo a contratação nesses moldes, em que há a aquisição de passagens em uma mesma reserva, possibilitam-se, por tal vinculação, os preços mais atrativos que constam de pacotes promocionais, prática absolutamente corriqueira no mercado e que não enseja a prática de venda casada, vedada pelo CDC.
 
Ademais, em tendo os autores optado pela reserva via Internet, cabível se presumir que as condições dos termos do negócio foram apresentadas ao interessado, antes de se findar a operação, pois tal praxe é corriqueira nos negócios congêneres das companhias aéreas em seus sítios eletrônicos, ou seja, a finalização da operação somente se torna possível após o interessado “clicar” previamente em opção dada em campo próprio, declarando que teria lido e estaria de acordo com os termos do contrato, sob pena de não conseguir ultimar a operação de reserva e compra.
 
Assim, se os autores de alguma forma não concordavam com as opções de negócio nesses termos ofertadas (com promoção específica), poderiam optar por outro tipo de aquisição de suas passagens, ou seja, com a compra das mesmas de modo não vinculado, obviamente, com preços e condições próprias.
 
Os autores admitem que cometeram um lapso na contratação, como se extrai da própria inicial, e mesmo cientes das condições e especificidades da contratação que optaram, procederam de modo distinto e que ensejou o cancelamento automático de voo e os demais desdobramentos que advieram.
 
De forma que as pretensões indenizatórias, seja no âmbito material ou moral, não têm sustentação, sendo de rigor a improcedência, devendo a r. sentença ser mantida, tal como lançada.
 
 

Não obstante os fundamentos declinados pelas instâncias ordinárias, entendo que assiste razão aos recorrentes.

De início, é preciso pontuar que não há dúvida, e nem há qualquer insurgência quanto à esta questão, que a relação jurídica travada entre as partes é nitidamente de consumo, tendo em vista que o adquirente da passagem amolda-se ao conceito de consumidor, como destinatário final, enquanto a empresa caracteriza-se como fornecedora do serviço de transporte aéreo de passageiros, nos termos dos arts. 2º e 3º do Código de Defesa do Consumidor - CDC.

Dessa forma, o caso em julgamento deve ser analisado sob a ótica da legislação consumerista, e não sob um viés eminentemente privado, sobretudo no que concerne à chamada pacta sunt servanda, como feito pelas instâncias ordinárias.

A propósito, acerca da suposta desigualdade de tratamento em razão da proteção legal conferida ao consumidor, esclarece Bruno Miragem:

A distinção que propõe Robert Alexy, entre a chamada igualdade jurídica (de iure) e a igualdade de fato, é o cerne da justificação dos chamados direito de proteção que propõe. A interpretação da Corte Constitucional Alemã, conforme indica Alexy, é extremamente ambígua, mas desta avulta o entendimento de que o legislador, a princípio, não pode conformar-se em aceitar as diferenças de fato existentes em uma determinada situação, se estas são incompatíveis com exigências de justiça. Havendo esta incompatibilidade, deverá eliminá-la. Neste sentido, a fórmula a que se chega para fundamentar a não violação do direito da igualdade - e em alguma medida a isonomia - pelo estabelecimento do direito de proteção do consumidor, é a clássica fórmula de raiz aristotélica sobre a igualdade, do tratamento igual aos iguais e desigual aos desiguais na medida da sua desigualdadeEm se tratando da relação de consumo, a figura da desigualdade fática, é que legitimará o tratamento jurídico desigual na medida desta desigualdade real.
(...). A desigualdade, in casu, reside na posição favorecida do fornecedor em relação ao consumidor, sobretudo em razão de um pressuposto poder econômico ou técnico mais significativo, que corresponderá, necessariamente, a uma posição de fragilidade e exposição do consumidor, o que se convencionou denominar de vulnerabilidade deste em relação àquele. 
(MIRAGEM, Bruno. Curso de Direito do Consumidor. 5 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, p. 53 - sem grifo no original)

   

Dentre os diversos mecanismos de proteção ao consumidor estabelecidos pela lei, a fim de equalizar a relação faticamente desigual em comparação ao fornecedor, destaca-se o art. 51 do CDC que, com base nos princípios da função social do contrato e da boa-fé objetiva, estabelece, em rol exemplificativo, as hipóteses das chamadas cláusulas abusivas, consideradas nulas de pleno direito em contratos de consumo.

As cláusulas abusivas consubstanciam, na verdade, um abuso no direito de contratar, diante da vulnerabilidade de uma das partes na relação (consumidor),  configurando o aludido art. 51 do Código Consumerista "uma das mais importantes mitigações da força obrigatória da convenção (pacta sunt servanda) na realidade brasileira, o que reduz substancialmente o poder das partes, em situação de profundo intervencionismo ou dirigismo contratual" (TARTUCE, Flávio; NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito do Consumidor: direito material e processual. 7 ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2018, p. 364).

A propósito, confira-se o teor do referido dispositivo legal, na parte que interessa ao presente julgamento:

Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:
 
(...);
 
IV - estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade;
 
(...);
 
XI - autorizem o fornecedor a cancelar o contrato unilateralmente, sem que igual direito seja conferido ao consumidor;
 
(...)
 
XV - estejam em desacordo com o sistema de proteção ao consumidor;
 
(...).
 
§ 1º Presume-se exagerada, entre outros casos, a vantagem que:
 
I - ofende os princípios fundamentais do sistema jurídico a que pertence;
 
II - restringe direitos ou obrigações fundamentais inerentes à natureza do contrato, de tal modo a ameaçar seu objeto ou equilíbrio contratual;
 
III - se mostra excessivamente onerosa para o consumidor, considerando-se a natureza e conteúdo do contrato, o interesse das partes e outras circunstâncias peculiares ao caso.
 
 

Além disso, o art. 39 do CDC também estabelece, em rol exemplificativo, algumas situações de práticas abusivas, as quais são vedadas ao fornecedor de produtos ou serviços.

Dentre elas, destaca-se a que proíbe a chamada "venda casada", disposta no inciso I do referido dispositivo legal, cuja redação é a seguinte:

Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas: (Redação dada pela Lei nº 8.884, de 11.6.1994)
 
I - condicionar o fornecimento de produto ou de serviço ao fornecimento de outro produto ou serviço, bem como, sem justa causa, a limites quantitativos;
 
 

No caso, a previsão de cancelamento unilateral da passagem de volta, em razão do não comparecimento para embarque no trecho de ida (no show), configura prática rechaçada pelo Código de Defesa do Consumidor, nos termos dos referidos dispositivos legais acima transcritos, devendo o Poder Judiciário restabelecer o necessário equilíbrio contratual.

Com efeito, obrigar o consumidor a adquirir nova passagem aérea para efetuar a viagem no mesmo trecho e hora marcados, a despeito de já ter efetuado o pagamento, configura obrigação abusiva, pois coloca o consumidor em desvantagem exagerada, sendo, ainda, incompatível com a boa-fé objetiva, que deve reger as relações contratuais (CDC, art. 51, IV).

Ademais, a referida cláusula contratual autoriza o fornecedor a cancelar o contrato unilateralmente, sem que igual direito seja conferido ao consumidor, incidindo na hipótese do art. 51, XI, do CDC, bem como configura a chamada "venda casada", pois condiciona o fornecimento do serviço de transporte aéreo do "trecho de volta" à utilização do "trecho de ida" (CDC, art. 39, I).

Sob qualquer ângulo analisado, é de se concluir que a prática de cancelar a passagem de volta, em razão da não utilização do trecho de ida, está em desacordo com o sistema de proteção ao consumidor, de envergadura constitucional, máxime porque a própria Carta Magna estabelece como um dos princípios da ordem econômica justamente defesa do consumidor, a teor do que dispõe o art. 170, inciso V, da CF:

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
 
I - soberania nacional;
 
II - propriedade privada;
 
III - função social da propriedade;
 
IV - livre concorrência;
 
V - defesa do consumidor;
 
VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação;
 
VII - redução das desigualdades regionais e sociais;
 
VIII - busca do pleno emprego;
 
IX - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País.
 
Págrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.
 
 

É de se observar que a referida prática, habitualmente adotada pelas empresas de transporte aéreo de passageiros, não tem qualquer razão técnico-jurídica, sendo tal medida justificada pela ora recorrida apenas por estar prevista em contrato, cuja finalidade é tão somente a maximização do lucro da empresa, pois permite a dupla venda do assento referente ao "trecho de volta".

No particular, vale ressaltar que não há qualquer óbice em se adotar medidas a fim de incrementar o lucro empresarial. Todavia, dentro de uma relação de consumo, há certos limites legais a serem observados, mormente quando houver severos prejuízos ao consumidor, como na espécie.

Conforme já ressaltado anteriormente, tratando-se de relação consumerista, a força obrigatória do contrato (pacta sunt servanda) é mitigada, não podendo o fornecedor de produtos e serviços, a pretexto de maximização do lucro, adotar prática abusiva ou excessivamente onerosa à parte mais vulnerável na relação, o consumidor.

Outro ponto que merece destaque é o fato de que, ainda que a aquisição dos bilhetes de "ida e volta" seja eventualmente mais barata, não se pode olvidar que são feitas duas compras, isto é, uma passagem de "ida" e uma passagem de "volta", tanto que os valores são mais elevados, se comparados à compra de apenas um trecho.

Dessa forma, se o consumidor, por qualquer motivo, não comparecer ao embarque no trecho de ida, deverá a empresa aérea adotar as medidas cabíveis quanto à aplicação de multa ou restrições ao valor do reembolso em relação ao respectivo bilhete, não havendo, porém, qualquer repercussão no trecho de volta, caso o consumidor não opte pelo cancelamento.

Em recente julgamento de um caso quase idêntico ao presente, a Quarta Turma desta Corte Superior, por votação unânime, entendeu que o cancelamento da viagem de volta, em razão do não comparecimento do passageiro para o trecho de ida (no show), configura conduta abusiva da empresa aérea, conforme se verifica da ementa do referido julgado:

RECURSO ESPECIAL. VIOLAÇÃO AO ART. 535 DO CPC⁄1973. CONTRATO DE TRANSPORTE AÉREO DE PESSOAS. TRECHOS DE IDA E VOLTA ADQUIRIDOS CONJUNTAMENTE. NÃO COMPARECIMENTO DO PASSAGEIRO PARA O TRECHO DE IDA (NO SHOW). CANCELAMENTO DA VIAGEM DE VOLTA. CONDUTA ABUSIVA DA TRANSPORTADORA. FALTA DE RAZOABILIDADE. OFENSA AO DIREITO DE INFORMAÇÃO. VENDA CASADA CONFIGURADA. INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS DEVIDA.
1. Não há falar em ofensa ao art. 535 do CPC⁄1973, se a matéria em exame foi devidamente enfrentada pelo Tribunal de origem, que emitiu pronunciamento de forma fundamentada, ainda que em sentido contrário à pretensão da parte recorrente.
2. É abusiva a prática comercial consistente no cancelamento unilateral e automático de um dos trechos da passagem aérea, sob a justificativa de não ter o passageiro se apresentado para embarque no voo antecedente, por afrontar direitos básicos do consumidor, tais como a vedação ao enriquecimento ilícito, a falta de razoabilidade nas sanções impostas e, ainda, a deficiência na informação sobre os produtos e serviços prestados.
3. Configura-se o enriquecimento ilícito, no caso, no momento em que o consumidor, ainda que em contratação única e utilizando-se de tarifa promocional, adquire o serviço de transporte materializado em dois bilhetes de embarque autônomos e vê-se impedido de fruir um dos serviços que contratou, o voo de volta.
4. O cancelamento da passagem de volta pela empresa aérea significa a frustração da utilização de um serviço pelo qual o consumidor pagou, caracterizando, claramente, o cumprimento adequado do contrato por uma das partes e o inadimplemento desmotivado pela outra, não bastasse o surgimento de novo dispêndio financeiro ao consumidor, dada a necessidade de retornar a seu local de origem.
5. A ausência de qualquer destaque ou visibilidade, em contrato de adesão, sobre as cláusulas restritivas dos direitos do consumidor, configura afronta ao princípio da transparência (CDC, art. 4º, caput) e, na medida em que a ampla informação acerca das regras restritivas e sancionatórias impostas ao consumidor é desconsiderada, a cláusula que prevê o cancelamento antecipado do trecho ainda não utilizado se reveste de caráter abusivo e nulidade, com fundamento no art. 51, inciso XV, do CDC.
6. Constando-se o condicionamento, para a utilização do serviço, o pressuposto criado para atender apenas o interesse da fornecedora, no caso, o embarque no trecho de ida, caracteriza-se a indesejável prática de venda casada. A abusividade reside no condicionamento de manter a reserva do voo de volta ao embarque do passageiro no voo de ida.
7. Ainda que o valor estabelecido no preço da passagem tenha sido efetivamente promocional, a empresa aérea não pode, sob tal fundamento, impor a obrigação de utilização integral do trecho de ida para validar o de volta, pelo simples motivo de que o consumidor paga para ir e para voltar, e, porque pagou por isso, tem o direito de se valer do todo ou de apenas parte do contrato, sem que isso, por si só, possa autorizar o seu cancelamento unilateral pela empresa aérea.
8. Ademais, a falta de razoabilidade da prática questionada se verifica na sucessão de penalidades para uma mesma falta cometida pelo consumidor. É que o não comparecimento para embarque no primeiro voo acarreta outras penalidades, que não apenas o abusivo cancelamento do voo subsequente.
9. O equacionamento dos custos e riscos da fornecedora do serviço de transporte aéreo não legitima a falta de razoabilidade das prestações, tendo em vista a desigualdade evidente que existe entre as partes desse contrato, anotando-se a existência de diferença considerável entre o saneamento da empresa e o lucro excessivo, mais uma vez, às custas do consumidor vulnerável.
10. Constatado o ilícito, é devida a indenização por dano moral, arbitrado a partir das manifestações sobre a questão pelas instância de origem.
11. Recurso especial a que se nega provimento.
(REsp n. 1.595.731⁄RO, Relator o Ministro Luis Felipe Salomão, DJe de 1⁄2⁄2018 - sem grifo no original)
 
 

Dentre os diversos e substanciosos fundamentos consignados no voto do eminente Ministro Relator do referido recurso especial, destaco o seguinte trecho acerca das diversas penalidades impostas ao consumidor em razão do não comparecimento para embarque no trecho de ida, reforçando a manifesta falta de razoabilidade na respectiva prática comercial:

(...), percebe-se que o não comparecimento para embarque no primeiro voo acarreta outras penalidades, que não apenas o abusivo cancelamento do voo subsequente, a demonstrar, com ainda mais realce, a desproporcionalidade do cancelamento, pois que configurada uma sucessão de penalidades para uma mesma falta cometida pelo consumidor.
 
No cenário traçado com base nas regras acima expostas, é cobrado do consumidor uma primeira "taxa", deduzida do valor da tarifa do voo de ida, porque não compareceu para embarque, uma segunda "taxa" sobre a tarifa paga pelo trecho de volta, que foi cancelado e, por fim, ele será impedido de voar. Acrescente-se aí, agora como prejuízo e não como sanção, tecnicamente falando, o valor que deverá desembolsar para retornar ao local de origem, como já referido.
 
12. Com efeito, por todos os motivos apresentados, tenho por abusivo e ilegal o cancelamento de um dos trechos de bilhete legitimamente adquirido pelo consumidor, por seu não comparecimento ao trecho anterior da viagem, mormente porque já estabelecidas outras sanções ao passageiro por esse comportamento.
 
Nessa linha de raciocínio, é fato que o ordenamento jurídico permite, assim como a análise econômica sugere, o equacionamento dos custos da empresa aérea por meio das práticas do no show e do overbooking, por exemplo, de modo a otimizar o aproveitamento econômico da aeronave, com o consequente melhoramento do mercado.
 
Ao mesmo tempo, é certo que o equacionamento dos custos e riscos da fornecedora do serviço de transporte aéreo não legitima a falta de razoabilidade das prestações, tendo em vista a desigualdade evidente que existe entre as partes desse contrato. Ainda, é preciso que se reconheça que há diferença grande entre manter-se saneada e o lucro excessivo, mais uma vez, às custas do consumidor vulnerável.
 
Por óbvio, não se pretende a substituição do agente público executivo, ditando regras de política tarifária de transporte aéreo de passageiros, mas, sim, e tão somente, subtrair dos atos executados qualquer pecha de abusividade por desconformidade com o ordenamento jurídico maior, função precípua do Judiciário.
 
 

Por essas razões, é de se reconhecer o ato ilícito cometido pela ré, a ensejar a procedência da ação indenizatória.

Ressalta-se, ainda, que a referida prática comercial abusiva ultrapassa o mero aborrecimento cotidiano, violando direitos ligados à tutela da dignidade humana, porquanto acarreta severas frustrações e angústias aos consumidores, os quais, sem qualquer garantia de êxito e em cidade diversa da de seu domicílio, viram-se obrigados a comprar nova passagem de volta, caracterizando-se, assim, a ocorrência de danos morais.

Em relação ao quantum devido, diante das circunstâncias do caso concreto, sobretudo porque os autores conseguiram embarcar no mesmo dia previsto para o retorno, entendo razoável o valor de R$ 5.000,00 (cinco mil reais), para cada autor.

Os danos materiais, por sua vez, correspondem ao preço da segunda passagem emitida referente ao trecho de volta, fixado em R$ 607,46 (seiscentos e sete reais e quarenta e seis centavos).

Ante o exposto, dou provimento ao recurso especial para julgar parcialmente procedentes os pedidos formulados na ação de indenização, condenando a Gol Linhas Aéreas Inteligentes S.A. ao pagamento do valor de R$ 607,46 (seiscentos e sete reais e quarenta e seis centavos), a título de danos materiais, corrigido desde a data do desembolso e com juros de mora a partir da citação, bem como ao pagamento de R$ 5.000,00 (cinco mil reais), para cada autor, corrigido a partir da data deste julgamento e também com juros moratórios desde a citação.

Fica a recorrida condenada às custas processuais e honorários advocatícios, os quais fixo em 15% sobre o valor atualizado da condenação.

É o voto