RECURSO ESPECIAL. CIVIL.
RECURSO ESPECIAL. CIVIL. DIREITO DE FAMÍLIA. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. ABANDONO AFETIVO. NÃO OCORRÊNCIA. ATO ILÍCITO. NÃO CONFIGURAÇÃO. ART. 186 DO CÓDIGO CIVIL. AUSÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO DA CONFIGURAÇÃO DO NEXO CAUSAL. SÚMULA Nº 7/STJ. INCIDÊNCIA. PACTA CORVINA. VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM. VEDAÇÃO. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL. NÃO CARACTERIZADO. MATÉRIA CONSTITUCIONAL.
1. A possibilidade de compensação pecuniária a título de danos morais e materiais por abandono afetivo exige detalhada demonstração do ilícito civil (art. 186 do Código Civil) cujas especificidades ultrapassem, sobremaneira, o mero dissabor, para que os sentimentos não sejam mercantilizados e para que não se fomente a propositura de ações judiciais motivadas unicamente pelo interesse econômico-financeiro.
2. Em regra, ao pai pode ser imposto o dever de registrar e sustentar financeiramente eventual prole, por meio da ação de alimentos combinada com investigação de paternidade, desde que demonstrada a necessidade concreta do auxílio material.
3. É insindicável, nesta instância especial, revolver o nexo causal entre o suposto abandono afetivo e o alegado dano ante o óbice da Súmula nº 7/STJ.
4. O ordenamento pátrio veda o pacta corvina e o venire contra factum proprium.
5. Recurso especial parcialmente conhecido, e nessa parte, não provido.
(REsp 1493125/SP, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 23/02/2016, DJe 01/03/2016)
JURISPRUDÊNCIA NA ÍNTEGRA
O EXMO. SR. MINISTRO RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA (Relator): Trata-se de recurso especial interposto por Maria Augusta Gallassi, com fundamento no art. 105, inciso III, alíneas "a" e "c", da Constituição Federal, contra acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo assim ementado:
A autora propôs ação de indenização por danos materiais e morais contra Arivaldo Germano Gallassi, seu pai biológico. Salientou ter sido fruto de relacionamento do réu com sua falecida mãe (Maria Aparecida Troiano Rodrigues) quando namoravam e que precisou intentar ação de investigação de paternidade para obter o reconhecimento judicial da filiação. Alegou nunca ter contado com a ajuda emocional ou financeira ao longo do tempo de sua vida pelo genitor, o qual vem adquirindo vários imóveis em nome de Izelli Aparecida Lui Gallassi, sua atual esposa, e de filhos de outros relacionamentos, o que representaria tratamento diferenciado em relação à prole, além de fraude e simulação em prejuízo de direito da autora, que também é sua filha legítima.
Registrou que a conduta de nunca ter sido apoiada quer moral ou financeiramente pelo réu configuraria um verdadeiro abandono afetivo, razão pela qual requereu, ao final, com base nos artigos 227, § 6º, da Constituição Federal, 1.566, IV, 1.596 e 1.634, I do Código Civil e 20 e 22 da Lei nº 8.069⁄1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA), reparação civil por danos morais e materiais no valor de 5.000 (cinco mil) salários mínimos "em consideração a tudo que passou na vida desde o seu nascimento até os dias de hoje, pela falta de carinho, afeto, guarda, ajuda moral, material e familiar, situações humilhantes enfrentadas" (e-STJ fl. 21).
O Juízo da Primeira Vara Cível da Comarca de Taquaritinga⁄SP julgou improcedente o pedido formulado na inicial nos termos da fundamentação da sentença que se transcreve na parte que interessa:
O acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça de São Paulo manteve hígida a sentença de improcedência (e-STJ fls. 278-283) tendo em vista que o abandono afetivo não ensejaria ato ilícito nem mesmo configuraria lesão a direitos de personalidade da autora.
Os embargos de declaração opostos na origem pela ora recorrente com a finalidade de prequestionar os artigos 186, 1.566, IV, e 1.634, I do Código Civil e 557 do Código de Processo Civil foram rejeitados (e-STJ fls. 370-376).
A recorrente aduz no recurso especial (e-STJ fls. 379-409), além de dissídio jurisprudencial, violação dos artigos 186, 1.566, IV e 1.634, I, do Código Civil, 557 do Código de Processo Civil, 227, § 6º, da Constituição Federal e 20 e 22 da Lei nº 8.069⁄1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente) por "sua omissão, indiferença, frieza, distância, desamparo material e moral, desrespeito a dignidade humana e desigualdade entre os filhos, que praticou com a recorrente desde o seu nascimento" (e-STJ fl. 387).
O recurso especial foi inadmitido (e-STJ fls. 499-500), ascendendo os autos a esta instância especial por força de decisão desta relatoria em agravo determinando a conversão em recurso especial (e-STJ fls. 549-550).
Instado a se manifestar, o Ministério Público Federal opinou, por meio do Subprocurador-Geral da República Sady d'Assumpção Torres Filho, pelo não conhecimento do recurso especial, nos termos da seguinte ementa:
É o relatório.
O EXMO. SR. MINISTRO RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA (Relator): O recurso não merece prosperar.
Saliente-se, ainda, que o dissídio pretoriano não restou caracterizado na forma exigida pelos artigos 541, parágrafo único, do Código de Processo Civil e 255, §§ 1º e 2º, do Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça, o que inviabiliza o conhecimento do recurso especial pela alínea "c" do permissivo constitucional.
A recorrente nasceu em 18 de abril de 1968 e foi inicialmente registrada como filha de José Rodrigues Cerri (acórdão e-STJ fl. 351). Em dezembro de 2004, aos 36 anos, ajuizou ação de investigação de paternidade contra o recorrido, julgada procedente em março de 2006.
O acórdão recorrido, ao sopesar o nexo causal entre o suposto dano subjetivo e a extensão dos laços de afeto envolvidos no caso concreto, assentou:
Extrai-se do contexto dos autos que outra pessoa, a saber, José Rodrigues Cerri, registrou a autora como se sua filha fosse ao se casar com sua mãe, ciente de não ser o pai biológico da criança, vindo a assumir tal papel espontaneamente, "agindo perante terceiros como pai, inclusive sob o enfoque da proteção moral, afetiva e material, a excluir a possibilidade de que o réu exercesse esse papel" (e-STJ fl. 352). Por sua vez, o recorrido, somente quase 36 (trinta e seis) anos após o nascimento da recorrente teve ciência da paternidade biológica por meio do exame de DNA, inexistindo provas de que tenha sido comunicado da gravidez.
A falta de afetividade no âmbito familiar, via de regra, não traduz ato ilícito reparável pecuniariamente. O ordenamento jurídico não prevê a obrigatoriedade de sentimentos que normalmente vinculam um pai a seu filho. Isso porque não há lei que gere tal dever, tendo em vista que afeto é sentimento imensurável materialmente. Tal circunstância, inclusive, refoge do âmbito jurídico, não desafiando dano moral indenizável à suposta vítima de desamor.
Ao revés, ao pai pode ser imposto o dever de registrar e sustentar financeiramente o filho, por meio da ação de alimentos combinada com investigação de paternidade, desde que demonstrada a necessidade concreta do auxílio material. Ressalvadas situações de gravidade extrema, não há a possibilidade de imputação do ônus de amar, muito embora seja sempre lamentável a constatação de relações familiares que não se nutrem pelo afeto verdadeiro e espontâneo. A condenação pecuniária não restituiria as coisas ao statu quo ante, já que não restauraria o sentimento não vivenciado, que jamais será compensado.
Ademais, a tardia busca pela paternidade também contribuiu para a situação que ora se alega injusta, o que de certa forma constitui um venire contra factum proprium. Afinal, a autora aguardou quase 4 (quatro) décadas para buscar sua verdadeira origem ancestral, enquanto o réu sequer poderia imaginar aquela circunstância, já que outra pessoa havia assumido em seu lugar tal encargo, exercendo o papel paterno familiar e socialmente.
De fato, existia uma relação paterno-filial com outrem, ou seja, não houve rompimento do convívio entre o recorrido e a recorrente, que inclusive, não mais está em fase de formação de personalidade. Segundo Eliene Ferreira Bastos, é "a dor do vazio da ausência do pai da mãe, da falta do apoio daqueles que tinham a obrigação de cuidar do filho que causa dano moral indenizável" (Família e Jurisdição, II, Revista IBDFAM, Editora Del Rey, pág. 74). Assim, à luz do contexto dos autos, não houve ocultação deliberada, pelo genitor, na participação da vida da filha, e, portanto, não há falar em culpa ou má-fé do recorrido no caso concreto.
Saliente-se, por oportuno, que o recorrido não pode ser punido por possuir condição patrimonial avantajada ou, ainda, por ter se casado com outras mulheres e tido nova prole, que a recorrente alega desfrutar de uma melhor situação econômica, sob pena de se incentivar a patrimonialização do direito de família. Por outro lado, nada indica que a fixação da pleiteada indenização estabelecerá o bom convívio entre as partes; ao contrário, os separará definitivamente. O pagamento de indenização manteria as partes ainda mais distanciadas, evitando-se o relacionamento pessoal e a construção de um convívio harmônico. A reparação pecuniária nesse caso seria desaconselhada, visto que traduziria reparar uma circunstância da vida, por si só complexa, com dinheiro.
Ademais, a solução encontrada pelas instâncias ordinárias encontra respaldo na mais recente jurisprudência da Corte:
No mesmo sentido:
Aliás, a possibilidade de compensação por danos morais por abandono psicológico exige detalhada demonstração do ilícito civil cujas especificidades ultrapassem, sobremaneira, o mero dissabor (REsp 1.159.242⁄SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 24⁄4⁄2012, DJe 10⁄5⁄2012), omissão cujo dano injusto não ficou demonstrado nos autos, o que atrai a incidência do teor da Súmula nº 7⁄STJ. Esta Corte entende que o reconhecimento de dano moral em matéria de família é situação excepcionalíssima, admitida a responsabilidade civil dos pais somente em casos extremos de efetivo excesso nas relações familiares.
Por outro lado, em virtude da vedação do pacta corvina, válido registrar que, enquanto o recorrido estiver vivo e desfrutando de plena capacidade mental, poderá administrar seu patrimônio como bem entender, ressalvando-se a possibilidade da recorrente buscar a proteção de seus direitos sucessórios quando da morte do seu genitor (arts. 544, 2.002 e 2.003 do Código Civil) por meio da devida colação dos bens doados antecipadamente a outros herdeiros necessários. Portanto, o mero fato de o réu adquirir bens móveis e imóveis em nome de outros filhos não caracteriza o alegado abandono afetivo e material, como acertadamente assentaram as instâncias ordinárias.
O afeto é de fundamental importância nas relações de família, mas não deve ser incentivada, na sua ausência, a compensação material, sob pena de se mercantilizar os sentimentos e instigar ações judiciais motivadas unicamente pelo interesse econômico-financeiro. Aliás, a discussão encontra-se delimitada pelos sentimentos individuais do ser humano. A afetividade, por vezes, é incontrolável pela razão, devendo ser livre para corresponder à verdade manifestada, o que, por vezes, refoge ao papel do Poder Judiciário.
No sentido da impossibilidade de estipulação dos pleiteados danos morais por falta de ilícito civil e de culpa evidenciada do genitor, cite-se conclusão de abalizada doutrina:
Em interessante reflexão acerca dos requisitos da responsabilidade civil, Maria Isabel Pereira da Costa discorre acerca do dano, afirmando que compensação pecuniária somente deve ser admitida de forma subsidiária, quando não mais possível recompor o dano sofrido com tratamento terapêutico, o que, na espécie, seria o mais adequado (Revista Brasileira de Direito de Família, Ano VII, nº 32, 2005, página 37).
Por fim, registre-se que o Supremo Tribunal Federal, ao analisar o tema, manteve hígido acórdão desta Corte que concluiu pela impossibilidade de indenização por abandono afetivo sob o fundamento de que a "legislação pertinente prevê a punição específica - perda do poder familiar - nos casos de abandono do dever de guarda e educação dos filhos" e a reparação pecuniária por abandono moral desafiaria a análise dos fatos e das provas constantes dos autos e da legislação infraconstitucional que disciplina a matéria (Código Civil e Estatuto da Criança e do Adolescente), cujo reexame encontraria óbice na Súmula nº 279⁄STF, bem como na natureza reflexa ou indireta de eventual ofensa ao texto constitucional (RE nº 567.164⁄MG, Relatora Min. Ellen Gracie, DJU 27⁄5⁄2009).
Ante o exposto, conheço parcialmente do recurso, e nessa parte, nego-lhe provimento.
É o voto.