DIREITO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. AÇÃO DE ALIMENTOS.
DIREITO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. AÇÃO DE ALIMENTOS. LEGITIMIDADE ATIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO. DIREITO INDIVIDUAL INDISPONÍVEL. RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. ART. 543-C DO CPC.
1. Para efeitos do art. 543-C do CPC, aprovam-se as seguintes teses: 1.1. O Ministério Público tem legitimidade ativa para ajuizar ação de alimentos em proveito de criança ou adolescente.
1.2. A legitimidade do Ministério Público independe do exercício do poder familiar dos pais, ou de o menor se encontrar nas situações de risco descritas no art. 98 do Estatuto da Criança e do Adolescente, ou de quaisquer outros questionamentos acerca da existência ou eficiência da Defensoria Pública na comarca.
2. Recurso especial provido.
(REsp 1265821/BA, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 14/05/2014, DJe 04/09/2014)
JURISPRUDÊNCIA NA ÍNTEGRA
RECORRENTE | : | MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DA BAHIA |
RECORRIDO | : | G L DA S |
ADVOGADO | : | JÂNIO CÂNDIDO SIMÕES NERI - DEFENSOR PÚBLICO |
INTERES. | : | INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO DE FAMILIA - "AMICUS CURIAE" |
ADVOGADO | : | RODRIGO DA CUNHA PEREIRA |
RELATÓRIO
O SENHOR MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO (Relator):
1. O Ministério Público do Estado da Bahia, por intermédio do promotor de justiça oficiante na Comarca de Livramento de Nossa Senhora⁄BA, ajuizou ação de alimentos em face de G.L. da S. e em benefício de cinco crianças com idades entre 4 (quatro) e 9 (nove) anos, filhos do requerido e de A. A. B. C. S.. Aduziu que, depois da separação do casal, o réu deixou de contribuir com o sustento dos filhos, motivo por que se pleiteou a condenação ao pagamento de meio salário mínimo para a subsistência da prole.
O Juízo de Direito da Vara Cível e Comercial da Comarca de Livramento de Nossa Senhora⁄BA extinguiu o processo sem resolução de mérito, por entender que o Ministério Público é carecedor de legitimidade ativa para a propositura de ação de alimentos em benefício de criança e adolescente que se encontram sob o poder familiar de um dos pais (fls. 14-20).
Sobreveio recurso de apelação ao qual foi negado provimento, nos termos da seguinte ementa:
O recurso especial veio apoiado na alínea "a" do dispositivo constitucional permissor, no qual o Parquet baiano aduziu, em síntese, ofensa ao art. 201, inciso III, do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Busca o Ministério Público o reconhecimento de sua legitimidade ativa para a propositura de ações de alimentos, independentemente da situação do menor.
Ascendendo os autos a esta Corte, verifiquei, além da relevância do tema tratado, haver multiplicidade de recursos a versar controvérsia alusiva à legitimidade do Ministério Público para o ajuizamento de ações de alimentos em benefício de crianças e adolescentes, mesmo quando se encontram sob o poder familiar de um dos pais - exegese dos arts. 201, inciso III, e 98, inciso II, ambos do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Por isso, afetei o julgamento do tema em destaque a esta Seção, nos termos do art. 543-C do CPC, bem como da Resolução n. 8⁄2008.
Na condição de amicus curiae, o Instituto Brasileiro de Direito de Família - IBDFAM -, em manifestação subscrita pelo Dr. Rodrigo da Cunha Pereira, opinou pelo reconhecimento da legitimidade do Ministério Público para o ajuizamento de ações de alimentos, independentemente de o beneficiado se encontrar em situação de risco (fls. 121-127).
O Ministério Público Federal, em parecer da lavra do i. Subprocurador-Geral da República Dr. Maurício Vieira Bracks, compareceu aos autos apenas para ratificar o recurso especial interposto pelo Parquet estadual, abraçando a mesma tese acerca da legitimidade ad causam (fl. 132).
É o relatório.
RELATOR | : | MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO |
RECORRENTE | : | MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DA BAHIA |
RECORRIDO | : | G L DA S |
ADVOGADO | : | JÂNIO CÂNDIDO SIMÕES NERI - DEFENSOR PÚBLICO |
INTERES. | : | INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO DE FAMILIA - "AMICUS CURIAE" |
ADVOGADO | : | RODRIGO DA CUNHA PEREIRA |
EMENTA
DIREITO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. AÇÃO DE ALIMENTOS. LEGITIMIDADE ATIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO. DIREITO INDIVIDUAL INDISPONÍVEL. RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. ART. 543-C DO CPC.
1. Para efeitos do art. 543-C do CPC, aprovam-se as seguintes teses:
1.1. O Ministério Público tem legitimidade ativa para ajuizar ação de alimentos em proveito de criança ou adolescente.
1.2. A legitimidade do Ministério Público independe do exercício do poder familiar dos pais, ou de o menor se encontrar nas situações de risco descritas no art. 98 do Estatuto da Criança e do Adolescente, ou de quaisquer outros questionamentos acerca da existência ou eficiência da Defensoria Pública na comarca.
2. Recurso especial provido.
VOTO
O SENHOR MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO (Relator):
2. O tema afetado a julgamento desta Seção, a par de ser repetitivo e permanente no âmbito judicial - pois não se trata de demanda sazonal que tende a se reduzir com o passar do tempo -, não tem encontrado conformação uniforme no âmbito desta Corte, circunstância que recomenda a pacificação da jurisprudência da Casa o quanto antes.
Acerca da legitimidade ativa do Ministério Público para a ação de alimentos em benefício de criança ou adolescente, acuso a existência de três correntes no âmbito das Turmas de Direito Privado, ora reconhecendo tal legitimidade, ora a afastando, ora ainda impondo-lhe condições pontuais.
Acolhendo a tese da legitimidade do Ministério Público, invoco como exemplos os seguintes precedentes: REsp 1269299⁄BA, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 15⁄10⁄2013, DJe 21⁄10⁄2013; AgRg no REsp 1245127⁄BA, Rel. Ministro SIDNEI BENETI, TERCEIRA TURMA, julgado em 08⁄11⁄2011, DJe 07⁄12⁄2011; REsp 1113590⁄MG, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 24⁄08⁄2010, DJe 10⁄09⁄2010; AgRg no Ag 1367323⁄MG, Rel. Ministro MASSAMI UYEDA, TERCEIRA TURMA, julgado em 07⁄04⁄2011, DJe 18⁄04⁄2011; REsp. 208.429⁄MG, Rel. Ministro CARLOS ALBERTO MENEZES DIREITO, TERCEIRA TURMA, julgado em 04⁄09⁄2001, DJ 01⁄10⁄2001.
A ementa a seguir reflete com clareza o entendimento acolhido:
Em sentido oposto, há outros precedentes a propugnar a ilegitimidade do Ministério Público para a ação de alimentos quando a criança ou adolescente se encontrar sob o poder familiar de um dos pais: REsp 1072381⁄MG, Rel. Ministro ALDIR PASSARINHO JUNIOR, QUARTA TURMA, julgado em 24⁄03⁄2009, DJe 11⁄05⁄2009; REsp 659.498⁄PR, Rel. Ministro JORGE SCARTEZZINI, QUARTA TURMA, julgado em 14⁄12⁄2004; REsp 127.725⁄MG, Rel. Ministro CASTRO FILHO, TERCEIRA TURMA, julgado em 15⁄05⁄2003; REsp 120.118⁄PR, Rel. Ministro RUY ROSADO DE AGUIAR, Rel. p⁄ Acórdão Ministro BARROS MONTEIRO, QUARTA TURMA, julgado em 17⁄09⁄1998.
A síntese dos fundamentos do citado entendimento pode ser bem representada pela ementa a seguir:
No corpo de alguns dos precedentes citados se pode verificar, no mínimo por obiter dictum, a existência de um terceiro entendimento, que reconhece a legitimidade do Ministério Público desde que não haja Defensoria Pública instalada na comarca ou que o serviço prestado seja precário.
De forma intermediária, reconhece-se também a legitimidade do Ministério Público para ajuizar ação de investigação de paternidade cumulada com ação de alimentos e para interpor recursos em ações de alimentos, na esteira da Súmula n. 99⁄STJ, segundo a qual "[o] Ministério Publico tem legitimidade para recorrer no processo em que oficiou como fiscal da lei, ainda que não haja recurso da parte": REsp 1058689⁄RJ, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 12⁄05⁄2009; REsp 493.708⁄SP, Rel. Ministro FERNANDO GONÇALVES, QUARTA TURMA, julgado em 15⁄03⁄2005, DJ 04⁄04⁄2005; REsp 211.061⁄MG, Rel. Ministro BARROS MONTEIRO, QUARTA TURMA, julgado em 04⁄12⁄2003, DJ 29⁄03⁄2004; REsp 226.686⁄DF, Rel. Ministro RUY ROSADO DE AGUIAR, QUARTA TURMA, julgado em 16⁄12⁄1999, DJ 10⁄04⁄2000; REsp 5.333⁄SP, Rel. Ministro NILSON NAVES, TERCEIRA TURMA, julgado em 22⁄10⁄1991, DJ 25⁄11⁄1991.
Como exemplo desse entendimento, colho a seguinte ementa:
3. Como se percebe dos precedentes citados, o debate acerca da legitimidade do Ministério Público, na maior parte das vezes, fica centrado na correta exegese do art. 201, III, do Estatuto da Criança e do Adolescente, cuja redação é a seguinte:
Os precedentes que negam legitimidade ao Ministério Público para a propositura de ação de alimentos entendem que o citado inciso III do art. 201 do ECA só é aplicável na hipótese em que ficar evidenciada alguma violação ou ameaça aos direitos da criança e do adolescente, restritos aos casos previstos no art. 98:
Apóiam-se, outrossim, no fato de que a ação de alimentos prevista no ECA só teria cabimento perante a Justiça da Infância e Juventude nas hipóteses mencionadas no art. 98, mercê do que dispõe o art. 148, parágrafo único, alínea "g":
Por outro lado, a corrente que franqueia legitimidade ao Ministério Público aduz - além da relevância dos interesses envolvidos - que o art. 201, III, do ECA não restringe a atuação do Ministério Público às hipóteses previstas no art. 98 do Estatuto, razão pela qual se mostraria desimportante o fato de o menor estar ou não sob o poder familiar de um dos pais.
4. Segundo penso, a solução da controvérsia não pode restringir-se à interpretação dos mencionados artigos do Estatuto da Criança e Adolescente. E isso por duas razões essenciais: (i) trata-se de investigação das atribuições do Ministério Público, ente que ocupa posição estrutural no Estado, no delineamento construído pela própria Constituição Federal; (ii) cuida-se de tutela de interesses de especialíssima grandeza, com os quais se preocupou também a Constituição Federal.
4.1. Deveras, quando são examinadas as atribuições de órgãos e instituições centrais na estrutura do Estado - como os tribunais superiores, tribunais de contas, Congresso Nacional, Advocacia Pública, Defensoria Pública e, no que interessa, Ministério Público -, a boa técnica recomenda que se inicie primeiramente pelo traçado na Carta Magna, para só depois se avançar - se e quando cabível - à legislação subalterna.
Isso para que o aplicador do direito não incorra em erro hermenêutico dos mais graves, que é interpretar a Constituição Federal segundo a legislação ordinária, quando, na verdade, a hierarquia das normas impõe exatamente o contrário.
Nesse passo, cumpre ressaltar que a Constituição Federal, em seu art. 127, traz logo de saída a identidade do Ministério Público, seu núcleo axiológico, sua vocação primeira, que é ser "instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis".
Para a consecução de tal desiderato, a Carta da República indica, nos incisos I a VIII do art. 129, de forma meramente exemplificativa, as funções institucionais mínimas do Ministério Público, trazendo no inciso IX do mesmo dispositivo a cláusula de abertura que permite à legislação infraconstitucional o incremento de outras atribuições, desde que compatíveis com a vocação constitucional do Parquet.
Verbis:
De logo já se deduz um vetor interpretativo invencível: a legislação infraconstitucional que se propuser a disciplinar funções institucionais do Ministério Público poderá apenas elastecer seu campo de atuação, mas nunca subtrair atribuições já existentes no próprio texto constitucional ou mesmo sufocar ou criar embaraços à realização de suas incumbências centrais, como a defesa dos "interesses sociais e individuais indisponíveis" (art. 127 da CF⁄1988) ou do respeito "aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia" (art. 129, II, da CF⁄1988).
No ponto, não há dúvida de que a defesa dos interesses de crianças e adolescentes, sobretudo no que concerne à sua subsistência e integridade, insere-se nas atribuições centrais do Ministério Público, como órgão que recebeu a incumbência constitucional de defesa dos interesses individuais indisponíveis.
Nesse particular, ao se examinar os principais direitos da infância e juventude (art. 227, caput, da Constituição Federal) percebe-se haver duas linhas principiológicas básicas bem identificadas, como bem menciona a doutrina: "a) de um lado, vige o princípio da absoluta prioridade desses direitos; b) de outro lado, vemos que a indisponibilidade é sua nota predominante, o que torna o Ministério Público naturalmente legitimado à sua defesa" (MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. 26 ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 737).
Deveras, é da própria letra da Constituição Federal que se extrai esse dever que transcende a pessoa do familiar envolvido, mostrando-se eloquente que não é só da família, mas também da sociedade e do Estado, o dever de assegurar à criança e ao adolescente, "com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação" (art. 227, caput), donde se extrai o interesse público e indisponível envolvido em ações direcionadas à tutela de direitos de criança e adolescente, das quais a ação de alimentos é apenas um exemplo.
Na mesma toada, a Carta consagra como direitos sociais a "alimentação" e "a proteção à maternidade e à infância" (art. 6º, caput, CF⁄1988), o que, de fato, reforça a conclusão de Mazzilli, para quem, em se tratando "de interesses indisponíveis de crianças ou adolescentes (ainda que individuais), e mesmo de interesses coletivos ou difusos relacionados com a infância e a juventude - sua defesa sempre convirá à coletividade como um todo" (MAZZILLI, Hugo Nigro. Op. cit., p. 739).
O Supremo Tribunal Federal acolheu expressamente entendimento segundo o qual a norma infraconstitucional que, por força do inciso IX do art. 129 da Constituição Federal, acresce atribuições ao Ministério Público local, relacionadas à defesa da criança e do adolescente, é consentânea com a vocação constitucional do Parquet, nos termos da ementa a seguir:
Na mesma linha, é a jurisprudência tranquila desta Casa em assegurar ao Ministério Público, dada a qualidade dos interesses envolvidos, a defesa dos direitos da criança e do adolescente, independentemente de se tratar de pessoa individualizada:
No que concerne especificamente à ação de alimentos, a doutrina não vacila em franquear legitimidade ativa ao Ministério Público:
4.2. Com efeito, não há como, segundo penso, diferenciar os interesses envolvidos para que apenas alguns possam ser tutelados pela atuação do Ministério Público, atribuindo-se-lhe legitimidade, por exemplo, em ações que buscam tratamento médico de criança e subtraindo-se-lhe a legitimidade para ações de alimentos. Os direitos à saúde e à alimentação são garantidos diretamente pela Constituição Federal com prioridade absoluta (art. 227, caput), de modo que o Ministério Público detém legitimidade para buscar, identicamente, a concretização, pela via judicial, de tais direitos de especial estatura.
E assim, a norma infraconstitucional que discipline a atuação do Ministério Público no cenário da tutela de direitos da infância e juventude não poderá ser interpretada, jamais, como uma norma limitativa das funções institucionais do Parquet, sob pena de ofensa às atribuições expressas na Constituição - de defesa de interesses individuais indisponíveis - e de descompasso com o propósito declarado da Carta, em franquear à legislação infraconstitucional a ampliação das funções institucionais do Ministério Público e ao Estado o dever de assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à alimentação.
Essa orientação vem sendo adotada pelo Supremo Tribunal Federal, em diversas decisões monocráticas, para reconhecer a legitimidade extraordinária do Ministério Público em ações de alimentos: RE 630.886, Rel. Min. Dias Toffoli; RE 634.910, Rel. Min. Celso de Mello; AI 716.212⁄RS, Rel. Min. Joaquim Barbosa; RE 222.693⁄MG, Rel. Min. Cezar Peluso; RE 244.330⁄MG, Rel. Min. Marco Aurélio; RE 522.792⁄SC, Rel. Min. Eros Grau; RE 541.400⁄RS, Rel. Min. Gilmar Mendes.
De resto, segundo penso, não haveria lógica em reconhecer ao Ministério Público legitimidade para ajuizamento de ação de investigação de paternidade cumulada com alimentos, ou mesmo a legitimidade recursal em ações nas quais intervém, como reiteradamente vem decidindo a jurisprudência (REsp. 208.429⁄MG, Rel. Ministro CARLOS ALBERTO MENEZES DIREITO, TERCEIRA TURMA, julgado em 04⁄09⁄2001; REsp 226.686⁄DF, Rel. Ministro RUY ROSADO DE AGUIAR, QUARTA TURMA, julgado em 16⁄12⁄1999; REsp 129.426⁄MG, Rel. Ministro WALDEMAR ZVEITER, TERCEIRA TURMA, julgado em 04⁄12⁄1997), subtraindo-lhe tal legitimação para o ajuizamento de ação unicamente de alimentos - o que contrasta com o senso segundo o qual quem pode mais pode menos.
5. Outra questão de suma importância é a mudança de paradigma ocorrida com a promulgação da Constituição Federal de 1988 e, mais tarde, do Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990, quando comparados com as legislações pretéritas referentes à infância e juventude.
A doutrina da proteção integral é expressamente adotada no Estatuto da Criança e do Adolescente:
Como já afirmado, a ideologia do ECA está em absoluta consonância com diplomas internacionais que já haviam deslocado o foco normativo do menor em situação irregular para o infante sob o ponto de vista de sua proteção integral, como é o caso da Convenção sobre os Direitos da Criança das Nações Unidas, promulgada no âmbito interno pelo Decreto n. 99.710⁄1990, que acolhe a mesma doutrina jurídica:
No que concerne às ações do Estado direcionadas a assegurar a alimentação da criança, por seus pais ou pessoas por ela responsáveis, a citada Convenção traz norma expressa a respeito:
6. Pois bem, retomo a análise do art. 201, III, do Estatuto da Criança e do Adolescente, o qual faculta ao Ministério Público a legitimidade para promover e acompanhar as ações de alimentos.
Com efeito, se corretamente compreendida a ideologia jurídica sobre a qual o ECA, a Constituição Federal e demais diplomas internacionais foram erguidos, que é a doutrina da proteção integral, não se me afigura acertado inferir que o mencionado artigo só tenha aplicação nas hipóteses previstas no art. 98 do mesmo diploma, ou seja, quando houver violação de direitos por parte do Estado, por falta, omissão ou abuso dos pais ou em razão da conduta da criança ou adolescente, ou ainda quando não houver exercício do poder familiar.
Isso porque tal solução, se bem analisada, e com a máxima vênia de seus defensores, consubstancia nada menos que o ressurgimento do vetusto paradigma superado, vigente durante o Código de Menores, que é a doutrina do menor em situação irregular.
Na verdade, há que se antecipar a atuação do Estado exatamente para que o infante não caia no que o Código de Menores chamava situação irregular, como nas hipóteses de maus-tratos, violação extrema de direitos por parte dos pais e demais familiares.
De fato, é decorrência lógica da doutrina da proteção integral o princípio da intervenção precoce, expressamente consagrado no art. 100, parágrafo único, inciso VI, do ECA, a respeito do qual a doutrina se manifesta da seguinte forma:
Ademais, com a solução contrária chegar-se-ia em um círculo vicioso: só se franquearia ao Ministério Público a legitimidade ativa quando houvesse ofensa ou ameaça a direitos da criança ou do adolescente, conforme previsão do art. 98 do ECA. Mas é exatamente mediante a ação manejada pelo Ministério Público que se investigaria a existência de ofensa ou ameaça a direitos. Vale dizer, sem ofensa não haveria ação, mas sem ação não se descortinaria eventual ofensa.
No trâmite do processo de alimentos, pode até chegar-se à conclusão de que a criança ou adolescente está bem acolhida e não necessita dos alimentos buscados pelo Parquet, seja porque o genitor que detém a guarda supre totalmente a necessidade e dispensa a contribuição do outro, seja porque o que não a detém presta alimentos de outra forma, elidindo, assim, sua responsabilidade alimentar perante a prole.
Porém, nada disso diz respeito à legitimidade ativa do Ministério Público, mas sim ao mérito do processo, o qual pode, eventualmente, findar com uma sentença de improcedência.
7. Por outro lado, há quem sustente que o entendimento contrário decorre do fato de o Juízo da Infância e Juventude só ser competente para julgar as ações de alimentos quando o menor se encontrar nas situações do art. 98 do ECA, nos termos do que dispõe o art. 148, parágrafo único, alínea "g".
Porém, se a situação da criança ou do adolescente não atrai a competência do Juízo da Infância, é óbvio que a solução não é declarar a ilegitimidade do Ministério Público e extinguir o processo, mas simplesmente declinar da competência para outro Juízo que, segundo as normas locais de organização judiciária, seja competente.
Parece de clareza solar que não se pode delimitar a legitimidade do autor - sobretudo a do Ministério Público, que tem assento constitucional - pela ótica da competência material do Juízo. No máximo, ter-se-ia carência de atribuição funcional de determinado promotor de justiça para atuar no caso, questionamento que tem certo verniz de matéria interna corporis do Ministério Público e que, de todo modo, não geraria a ilegitimidade processual da instituição.
8. De outra parte, penso que não se pode confundir a substituição processual do Ministério Público - em razão da qualidade dos direitos envolvidos, mediante a qual se pleiteia, em nome próprio, direito alheio - com a representação processual da Defensoria Pública.
Deveras, o fato de existir Defensoria Pública relativamente eficiente na comarca não se relaciona com a situação que, no mais das vezes, justifica a legitimidade do Ministério Público, que é a omissão dos pais ou responsáveis na satisfação dos direitos mínimos da criança e do adolescente, notadamente o direito à alimentação.
É bem de ver que - diferentemente da substituição processual do Ministério Público -, a assistência judiciária prestada pela Defensoria Pública não dispensa a manifestação de vontade do assistido ou de quem lhe faça as vezes, além de se restringir, mesmo no cenário da Justiça da Infância, aos necessitados, no termos do art. 141, § 1º, do ECA.
Vale dizer, nessas situações, o ajuizamento da ação de alimentos continua ao alvedrio dos responsáveis pela criança ou adolescente, ficando condicionado, portanto, aos inúmeros interesses rasteiros que, frequentemente, subjazem ao relacionamento desfeito dos pais.
Como sublinhou com precisão Piero Calamandrei,
Sabe-se que, em não raras vezes, os alimentos são pleiteados com o exclusivo propósito de atingir o ex-convivente, na mesma frequência com que a pessoa detentora da guarda do filho se omite no ajuizamento da demanda quando ainda remanescer esperança no restabelecimento da relação. Enquanto isso, a criança aguarda a acomodação dos interesses dos pais, que nem sempre coincidem com os seus.
9. Assim, para fins do art. 543-C, do CPC, propõem-se as seguintes teses: (i) o Ministério Público tem legitimidade ativa para ajuizar ação de alimentos em proveito de criança ou adolescente; (ii) a legitimidade do Ministério Público independe do exercício do poder familiar dos pais, ou de o menor se encontrar nas situações de risco descritas no art. 98 do Estatuto da Criança e do Adolescente, ou de quaisquer outros questionamentos acerca da existência ou eficiência da Defensoria Pública na comarca.
10. Diante do exposto, dou provimento ao recurso especial, para que os autos retornem à origem, com o regular prosseguimento da demanda.
É como voto.
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RELATOR | : | MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO |
RECORRENTE | : | MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DA BAHIA |
RECORRIDO | : | G L DA S |
ADVOGADO | : | JÂNIO CÂNDIDO SIMÕES NERI - DEFENSOR PÚBLICO |
INTERES. | : | INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO DE FAMILIA - "AMICUS CURIAE" |
ADVOGADO | : | RODRIGO DA CUNHA PEREIRA |
VOTO
O EXMO. SR. MINISTRO JOÃO OTÁVIO DE NORONHA:
Sr. Presidente, esse conflito de atribuições entre Defensoria Pública e Ministério Público não pode prejudicar o interesse do menor. A extensão da competência, como bem ressaltado pelo eminente Relator, de mais um órgão poder defender os interesses do menor, é algo que se louva em termos de proteção da cidadania e de interesse indisponível quando se trata de menor.
Em casos concretos, a Defensoria Pública vai se firmando, vai mostrando cada vez mais a sua importância como órgão de defesa dos direitos dos mais carentes, que, certamente, são a maioria da população brasileira.
Não é que se possa pensar – e volto a dizer – que o Ministério Público vai selecionar as causas em que irá atuar. Ele agirá naquelas hipóteses da negligência da família, da mãe, do parente legitimado. A mãe pode contratar um advogado ou pode acionar a Defensoria Pública. A Defensoria Pública não pode, sponte propria, acionar, e o Ministério Público pode. Há uma diferença nessas situações muito bem definida aqui pelo eminente Relator.
Penso que, no Estado Democrático de Direito – já alcançamos essa maturidade política de Estado Democrático de Direito –, a prevalência da igualdade, com a eliminação da pobreza, com a eliminação da miséria, passa por iniciativas que sobrepõem interesses de categorias. Daí o acerto do eminente Relator em decidir pela competência do Ministério Público. Por isso, estou acompanhando o voto de S. Exa., louvando a forma um tanto ousada, mas aguerrida, do ilustre representante da Defensoria Pública na busca da preservação das suas atribuições, as quais esta Corte sempre respeitará.
Dou provimento ao recurso especial.