Jurisprudência - STJ

RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER.

Por: Equipe Petições

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RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER. PRETENSÃO EXARADA POR EMPRESA QUE EFETUA INTERMEDIAÇÃO DE COMPRA E VENDA DE MOEDA VIRTUAL (NO CASO, BITCOIN) DE OBRIGAR A INSTITUIÇÃO FINANCEIRA A MANTER CONTRATO DE CONTA-CORRENTE. ENCERRAMENTO DE CONTRATO, ANTECEDIDO POR REGULAR NOTIFICAÇÃO. LICITUDE. RECURSO ESPECIAL IMPROVIDO.

1. As razões recursais, objeto da presente análise, não tecem qualquer consideração, sequer "an passant", acerca do aspecto concorrencial, em suposta afronta à ordem econômica, suscitado em memoriais e em sustentação oral, apenas. A argumentação retórica de que todas as instituições financeiras no país teriam levado a efeito o proceder da recorrida único banco acionado na presente ação , ou de que haveria obstrução à livre concorrência inexistindo, para esse efeito, qualquer discussão quanto ao fato de que o Banco recorrido sequer atuaria na intermediação de moedas virtuais , em nenhum momento foi debatida nos autos, tampouco demonstrada, na esteira do contraditório, razão pela qual não pode ser conhecida.

1.1 De igual modo, não se poderia conhecer da novel alegação de inviabilização do desenvolvimento da atividade de corretagem de moedas virtuais a qual pressupõe ou que o banco recorrido detivesse o monopólio do serviço bancário de conta-corrente ou que todas as instituições financeiras atuantes nesse segmento (de expressivo número) tivessem adotado o mesmo proceder da recorrida , se tais realidades não foram em momento algum aventadas, tampouco retratadas nos presentes autos.

1.2 Essas matérias hão de ser enfrentadas na seara administrativa competente ou em outro recurso especial, caso, necessariamente, sejam debatidas na origem e devolvidas ao conhecimento do Superior Tribunal de Justiça, o que não se deu na hipótese, ressaltando-se, para esse efeito, que memoriais ou alegações feitas da Tribuna não se prestam para configurar prequestionamento. 2. O serviço bancário de conta-corrente afigura-se importante no desenvolvimento da atividade empresarial de intermediação de compra e venda de bitcoins, desempenhada pela recorrente, conforme ela própria consigna, mas sem repercussão alguma na circulação e na utilização dessas moedas virtuais, as quais não dependem de intermediários, sendo possível a operação comercial e/ou financeira direta entre o transmissor e o receptor da moeda digital. Nesse contexto, tem-se, a toda evidência, que a utilização de serviços bancários, especificamente o de abertura de conta-corrente, pela insurgente, dá-se com o claro propósito de incrementar sua atividade produtiva de intermediação, não se caracterizando, pois, como relação jurídica de consumo mas sim de insumo , a obstar a aplicação, na hipótese, das normas protetivas do Código de Defesa do Consumidor. 3. O encerramento do contrato de conta-corrente, como corolário da autonomia privada, consiste em um direito subjetivo exercitável por qualquer das partes contratantes, desde que observada a prévia e regular notificação. 3.1 A esse propósito, destaca-se que a Lei n.

4.595/1964, recepcionada pela Constituição Federal de 1988 com status de lei complementar e regente do Sistema Financeiro Nacional, atribui ao Conselho Monetário Nacional competência exclusiva para regular o funcionamento das instituições financeiras (art. 4º, VIII). E, no exercício dessa competência, o Conselho Monetário Nacional, por meio da edição de Resoluções do Banco Central do Brasil que se seguiram, destinadas a regulamentar a atividade bancária, expressamente possibilitou o encerramento do contrato de conta de depósitos, por iniciativa de qualquer das partes contratantes, desde que observada a comunicação prévia. A dicção do art. 12 da Resolução BACEN/CMN n. 2.025/1993, com a redação conferida pela Resolução BACEN/CMN n. 2.747/2000, é clara nesse sentido.

4. Atendo-se à natureza do contrato bancário, notadamente o de conta-corrente, o qual se afigura intuitu personae, bilateral, oneroso, de execução continuada, prorrogando-se no tempo por prazo indeterminado, não se impõe às instituições financeiras a obrigação de contratar ou de manter em vigor específica contratação, a elas não se aplicando o art. 39, II e IX, do Código de Defesa do Consumidor. Revela-se, pois, de todo incompatível com a natureza do serviço bancário fornecido, que conta com regulamentação específica, impor-se às instituições financeiras o dever legal de contratar, quando delas se exige, para atuação em determinado seguimento do mercado financeiro, profunda análise de aspectos mercadológico e institucional, além da adoção de inúmeras medidas de segurança que lhes demandam o conhecimento do cliente bancário e de reiterada atualização do seu cadastro de clientes, a fim de minorar os riscos próprios da atividade bancária.

4.1 Longe de encerrar abusividade, tem-se por legítima, sob o aspecto institucional, a recusa da instituição financeira recorrida em manter o contrato de conta-corrente, utilizado como insumo, no desenvolvimento da atividade empresarial, desenvolvida pela recorrente, de intermediação de compra e venda de moeda virtual, a qual não conta com nenhuma regulação do Conselho Monetário Nacional (em tese, porque não possuiriam vinculação com os valores mobiliários, cuja disciplina é dada pela Lei n. 6.385/1976). De igual modo, sob o aspecto mercadológico, também se afigura lídima a recusa em manter a contratação, se, conforme sustenta a própria insurgente, sua atividade empresarial se apresenta, no mercado financeiro, como concorrente direta e produz impacto no faturamento da instituição financeira recorrida. Desse modo, o proceder levado a efeito pela instituição financeira não configura exercício abusivo do direito.

5. Não se exclui, naturalmente, do crivo do Poder Judiciário a análise, casuística, de eventual desvirtuamento no encerramento do ajuste, como o inadimplemento dos deveres de informação e de transparência, ou a extinção de uma relação contratual longeva, do que, a toda evidência, não se cuida na hipótese ora vertente.

Todavia, o propósito de obter o reconhecimento judicial da ilicitude, em tese, do encerramento do contrato, devidamente autorizado pelo órgão competente para tanto, evidencia, em si, a improcedência da pretensão posta.

6. Recurso especial improvido.

(REsp 1696214/SP, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, TERCEIRA TURMA, julgado em 09/10/2018, DJe 16/10/2018)

 

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JURISPRUDÊNCIA NA ÍNTEGRA

RECURSO ESPECIAL Nº 1.696.214 - SP (2017⁄0224433-4)
 
 
RELATÓRIO
 

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO BELLIZZE:

Mercado Bitcoin Serviços Digitais Ltda. interpõe recurso especial, fundado nas alíneas c, do permissivo constitucional, em contrariedade a acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

Subjaz ao presente recurso especial ação de obrigação de fazer c⁄c pedido de antecipação de tutela promovida por Mercado Bitcoins Serviços Digitais Ltda. contra Banco Itaú S.A., tendo por propósito obstar que o banco demandado encerre, conforme notificação extrajudicial previamente encaminhada, o contrato de conta-corrente estabelecido entre as partes.

Em sua exordial (e-STJ, fls. 1-12), a demandante esclareceu que explora a atividade de corretagem, mediação de negócios e serviços em geral através da internet. Ressaltou, assim, que a sua principal atividade consiste em intermediar a comercialização de moeda virtual, denominada Bitcoin, sendo hoje a moeda virtual com maior aceitação no mundo inteiro.

Especificou que, para a realização de compra e venda das moedas virtuais por seu intermédio, os interessados devem necessariamente se cadastrar em seu site (www.mercadobitcoin.com.br) depositando valores em sua conta bancária, que servem de crédito para efetuarem as compras de moedas virtuais. Entendeu, assim, ficar bem demonstrada a importância que uma conta bancária representa para  o exercício de sua atividade empresarial.

Noticiou que, apesar de sempre ter mantido uma boa relação com o banco Itaú, com o pagamento de todas as tarifas impostas e de considerável movimentação financeira, foi surpreendida por uma notificação enviada pelo Itaú informando que sua conta bancária será encerrada dentro de 30 (trinta) dias em razão de simples 'desinteresse comercial'.

Nesse contexto, assentou que o ato praticado pelo Itaú, consistente no início da adoção de medidas para encerrar a conta bancária de sua titularidade, configura prática abusiva e ato ilícito, nos termos da legislação consumerista e do Código Civil.

O banco requerido apresentou peça contestatória em que infirmou integralmente a pretensão posta. Aduziu, em suma, que o contrato firmado entre as partes prevê a possibilidade de rescisão contratual das partes a qualquer tempo, por meio de denúncia unilateral. Anotou, também, que agiu em consonância com as determinações do Banco Central, notificando o autor quanto ao encerramento da conta bancária, de modo que não praticou nenhum ato ilícito (e-STJ, fls. 94-95).

Em primeira instância, o Juízo a quo, após afastar a incidência do Código de Defesa do Consumidor e reconhecer a inexistência de prática de ato ilícito por parte da instituição financeira demandada, julgou o pedido improcedente (e-STJ, fls. 199-202).

Irresignada, Mercado Bitcoin Serviços Digitais Ltda. interpôs recurso de apelação, ao qual o Tribunal de origem negou provimento, em acórdão assim ementado:

Apelação digital. Ação de obrigação de fazer. Incidência do Código de Defesa do Consumidor (Súmula 297 do STJ), que não conduz inexoravelmente à procedência da ação.
Apelante que recebeu notificação quanto ao encerramento de sua conta bancária. Possibilidade de rescisão unilateral do contrato de abertura de conta corrente. Notificação providenciada. Não verificada qualquer conduta abusiva por parte do Apelado. Precedentes jurisprudenciais. Sentença de improcedência mantida. Recurso não provido. (e-STJ, fl. 258)
 

Em contrariedade ao aresto, Mercado Bitcoin Serviços Digitais Ltda. interpõe o presente recurso especial, em que aponta a violação dos arts. 6º, IV, e 39, II e IX, do Código de Defesa do Consumidor; e 187 do Código Civil, além de dissenso jurisprudencial.

Em suas razões recursais, sustenta, em síntese, que a iniciativa imotivada do banco recorrido de encerrar a conta-corrente ofende o direito básico do consumidor, nos termos do art. 6º, IV, do CDC, e configura prática abusiva descrita no art. 39, II e IX, do mesmo diploma legal. Assegura, pois, ser vedado ao fornecedor de serviço bancário recusar a prestação diretamente a quem se disponha a adquiri-lo mediante pronto pagamento, como se dá na hipótese dos autos. Alega que, "considerando a importância que uma conta corrente representa para a vida de uma empresa, seu encerramento unilateral e sem justificativa agride não só a probidade e a boa-fé, como também a própria política nacional de relações de consumo, a qual, segundo o art. 4º do Código de Defesa do Consumidor, tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo.

Defende, ainda, que o encerramento abrupto e unilateral de uma conta-corrente, absolutamente importante para a vida de uma empresa, configura, evidentemente, abuso de direito, no termos do art. 187 do Código Civil, especialmente porque a manutenção da conta não gera nenhum prejuízo ao recorrido. Aduz que o art. 12, I, da Resolução n. 2.025⁄1993 do Conselho Monetário Nacional não confere respaldo ao proceder levado a efeito pelo banco recorrido, pois o referido preceito legal não alberga o encerramento imotivado da conta-corrente, tal como se deu na espécie. Por fim, aponta a existência de dissenso jurisprudencial, indicando, como paradigma, precedente desta Terceira Turma (REsp n. 1.2777.762⁄SP) - e-STJ, fls. 265-285.

A parte adversa apresentou contrarrazões às fls. 350-357 (e-STJ).

Em decisão monocrática, este relator negou provimento ao recurso especial (e-STJ, fls. 373-376).

Na sessão de julgamento do dia 15⁄5⁄2018, a Terceira Turma, por unanimidade, entendeu por bem conferir provimento ao agravo interno, sem lavratura de acórdão, para que o recurso especial, oportunamente, fosse pautado.

É o relatório.

 
RECURSO ESPECIAL Nº 1.696.214 - SP (2017⁄0224433-4)
 
 
VOTO
 

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO BELLIZZE(RELATOR):

A controvérsia submetida à análise deste Colegiado centra-se em saber se o encerramento de conta-corrente, antecedido de regular notificação à empresa correntista, levada a efeito pela instituição financeira, configura prática comercial abusiva, nos termos do Código de Defesa do Consumidor, e⁄ou ato ilícito, na modalidade abuso de direito, de acordo com o art. 187 do Código Civil.

Delimitada, nesses exatos termos, a questão posta, importa consignar, de plano, que a argumentação expendida pela ora insurgente, em sede de memoriais e no parecer acostados aos autos (e-STJ, fls. 432-453), bem como na Tribuna, por ocasião de sua sustentação oral, relativa ao efeito lesivo à livre concorrência e à violação da ordem econômica ocasionados, supostamente, pelo encerramento de conta-corrente de titularidade de corretoras de criptomoedas, não foi, de fato, objeto de qualquer deliberação, seja na sentença, seja no acórdão recorrido. E não o foi porque a tese não restou vertida como fundamento de sua causa de pedir, tampouco nas suas subsequentes intervenções durante todo o trâmite processual.

Aliás, as razões recursais, objeto da presente análise, não tecem qualquer consideração, sequer “an passant”, acerca do agora suscitado aspecto concorrencial, em suposta afronta à ordem econômica. A argumentação retórica de que todas as instituições financeiras no país teriam levado a efeito o proceder da recorrida — único banco acionado na presente ação —, ou de que haveria obstrução à livre concorrência — inexistindo, para esse efeito, qualquer discussão quanto ao fato de que o Banco recorrido sequer atuaria na intermediação de moedas virtuais —, em nenhum momento foi debatida nos autos, tampouco demonstrada, na esteira do contraditório, razão pela qual não pode ser conhecida.

De igual modo, não se poderia conhecer da novel alegação de inviabilização do desenvolvimento da atividade de corretagem de moedas virtuais — a qual pressupõe ou que o banco recorrido detivesse o monopólio do serviço bancário de conta-corrente ou que todas as instituições financeiras atuantes nesse segmento (de expressivo número) tivessem adotado o mesmo proceder da recorrida —, se tais realidades não foram em momento algum aventadas, tampouco retratadas nos presentes autos.

Essas matérias hão de ser enfrentadas na seara administrativa competente ou em outro recurso especial, caso, necessariamente, sejam debatidas na origem e devolvidas ao conhecimento do Superior Tribunal de Justiça, o que não se deu na hipótese, ressaltando-se, para esse efeito, que memoriais ou alegações feitas da Tribuna não se prestam para configurar prequestionamento.

Feitos esses esclarecimentos, passa-se, propriamente a enfrentar as razões recursais.

Para o correto tratamento da questão efetivamente posta afigura-se relevante, de início, acentuar que a relação jurídica estabelecida entre as partes não é regida pela legislação consumerista, tal como propugna a recorrente, como fundamento jurídico, em sua exordial e nas presentes razões recursais.

Conforme expendido pela própria insurgente, o serviço bancário de conta-corrente é utilizado como implemento de sua atividade empresarial, não se destinando, pois, ao seu consumo final.

Segundo esclarecido, Mercado Bitcoin Serviços Digitais Ltda. explora atividade de intermediação na comercialização de moeda virtual, especificamente a denominada Bitcoin.

Nesse ínterim, para a adequada compreensão da atividade empresarial desempenhada pela recorrente, oportuno tecer algumas considerações sobre moedas virtuais, as quais possuem, entre as suas características principais, justamente a desnecessidade de um terceiro intermediário para a realização de transações.

O registro é relevante para evidenciar que o serviço bancário afigura-se importante no desenvolvimento da atividade de intermediação desempenhada pela recorrente, conforme ela própria consigna, mas sem repercussão alguma na circulação e na utilização dessas moedas virtuais, as quais, até o presente momento, não contam com nenhuma regulamentação pelo Conselho Monetário Nacional (em tese, porque não possuiriam vinculação com os valores mobiliários, cuja disciplina é dada pela Lei n. 6.385⁄1976).

A moeda virtual, em geral, pode ser compreendida como um protocolo computacional de código aberto, criptografado (o que envolve um conjunto de princípios e técnicas empregadas para cifrar uma mensagem e torná-la inintelegível a quem não tem acesso às convenções combinadas - Dicionário Houaiss) e matematicamente válido, que representa uma unidade de valor, por meio do qual se efetivam transações comerciais e⁄ou financeiras, a consubstanciar um sistema econômico alternativo, criado por particulares, e não por um Estado. Possui, como principais características, a incorporeidade, a desnecessidade de um terceiro intermediário para realização de transações ea ausência de uma autoridade central emissora e controladora.

Especificamente em relação à bitcoin, consoante se extrai do sítio eletrônico da wikipedia, "é considerada a primeira moeda digital mundial descentralizada, e responsável pelo ressurgimento do chamado sistema bancário livre. Trata-se, conforme ali consignado, de "moeda digital do tipo criptomoeda descentralizada e, também um sistema econômico alternativo (peer-to-peer eletronic cash system), apresentada em 2008 na lista de discussão The Cryptography Mailing por um programador, ou um grupo, de pseudônimo Satoshi Nakamoto". Segundo consta, "o bitcoin permite transações financeiras sem intermediários, mas verificadas por todos os usuários da rede (nós da rede) Bitcoin, que são gravadas em um banco de dados distribuídos, chamado de blockchain". E ainda: "a rede descentralizada ou sistema econômico alternativo Bitcoin possui a topologia ponto-a-ponto (peer-to-peer ou P2P), isto é, uma estrutura sem intermediário e sem uma entidade administradora central [, o] que torna inviável qualquer autoridade financeira ou governamental manipular a emissão e o valor de bitcoins ou induzir a inflação com a produção de mais dinheiro" (Fonte: https:⁄⁄pt.wikipedia.org⁄wiki⁄Bitcoin, acesso em 2⁄8⁄2018).

Diante de sua inegável repercussão nas novas relações jurídicas advindas do uso e da circulação das moedas digitais, notadamente a bitcoin, especializada doutrina passou a dela tratar, ressaltando, entre as suas características, a desnecessidade de um terceiro intermediário para a realização de transações e a ausência de autoridade estatal reguladora.

A propósito, destaca-se o seguinte excerto doutrinário:

O bitcoin é uma criptomoeda que utiliza uma tecnologia ponto a ponto (peer-to-peer) para criar um sistema de pagamentos on-line que não depende de intermediários e não se submete a nenhuma autoridade regulatória centralizadora. O código do bitcoin é aberto, seu design é público, não há proprietários ou controladores centrais e qualquer pessoa pode participar do seu sistema de gerenciamento coletivo. Enfim, o bitcoin é uma inovação revolucionária porque é o primeiro sistema de pagamentos totalmente descentralizado.” (Ramos, André Luiz Santa Cruz. Direito Empresarial. 8ª Edição. Ed. Método, p. 529)
 

A partir de tais considerações, ressai evidenciado, portanto, que o serviço bancário de conta-corrente oferecido pelas instituições financeiras em nada repercute na circulação ou na utilização das moedas virtuais, que, como visto, não dependem de intermediários, possibilitando a operação comercial e⁄ou financeira direta entre o transmissor e o receptor da moeda digital.

Como sustentado pela insurgente, o serviço bancário de conta-corrente afigura-se importante no desenvolvimento de sua atividade de intermediação.

De acordo com a especificação feita pela própria insurgente, Mercado Bitcoin Serviços Digitais Ltda., para a realização de compra e venda das moedas virtuais por seu intermédio, os interessados devem necessariamente se cadastrar em seu site (www.mercadobitcoin.com.br), e depositar valores em sua conta bancária, para, a partir desse crédito, efetuarem as compras de moedas virtuais, no que estaria  evidenciada, a seu juízo, a importância que o serviço de conta-bancária representa para  o exercício de sua atividade empresarial.

Nesse contexto, tem-se, a toda evidência, que a utilização de serviços bancários, especificamente o de abertura de conta-corrente, pela insurgente, dá-se com o claro propósito de incrementar sua atividade produtiva de intermediação, não se caracterizando, pois, como relação jurídica de consumo — mas sim de insumo —, a obstar a aplicação, na hipótese, das normas protetivas do Código de Defesa do Consumidor.

Por consectário, o encerramento de conta-corrente, antecedido de regular notificação, como no caso dos autos, não constitui prática abusiva comercial, na esteira da legislação consumerista.

Remanesce, contudo, a necessidade de se aferir se a instituição financeira possui a obrigação legal de contratar ou de manter a contratação de um serviço bancário, sob pena de incorrer em ato ilícito, na modalidade abuso de direito, tal como defendido pela insurgente.

A esse propósito, assinala-se que, do ponto de vista estritamente mercadológico, é possível supor que uma instituição financeira não repute conveniente fomentar esse tipo de atividade, que, nos dizeres da insurgente, se colocaria como sua concorrente no mercado financeiro, produzindo impacto no faturamento das instituições financeiras.

Passa-se, assim, a examinar se tal proceder constitui abuso de direito e, portanto, ato ilícito, por parte da instituição financeira recorrida.

No ponto, assinala-se, de plano, que o exercício de um direito subjetivo há de observar detidamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes, sob pena de o titular incorrer em ato ilícito, passível de indenização, se causador de prejuízo, de qualquer ordem, a outrem. O art. 187 do Código Civil, reputado violado, é expresso nesse sentido.

Como se constata, na sistemática do Código Civil de 2002, a boa-fé atua não apenas como fonte dos deveres jurídicos anexos ou como norte interpretativo dos negócios jurídicos, mas também como regulador do exercício dos direitos subjetivos.

Na função regulatória destacada, a aplicação da boa-fé impõe ao titular de um direito subjetivo a obrigação de, ao exercê-lo, observar, detidamente, os deveres de lealdade, de cooperação e de respeito às legítimas expectativas do outro sujeito da relação jurídica privada. A inobservância desse proceder configura exercício abusivo do direito tutelado, que, na dicção do art. 187 do CC, se reveste de ilicitude, inclusive passível de reparação, caso dele advenha prejuízo a outrem.

Diante de tais considerações de ordem conceitual, é relevante deixar assente que o encerramento do contrato de conta-corrente, como corolário da autonomia privada, consiste em um direito subjetivo exercitável por qualquer das partes contratantes, desde que observada a prévia e regular notificação.

A esse propósito, destaca-se que Lei n. 4.595⁄1964, recepcionada pela Constituição Federal de 1988 com status de lei complementar e regente do Sistema Financeiro Nacional, atribui ao Conselho Monetário Nacional competência exclusiva para regular o funcionamento das instituições financeiras (art. 4º, VIII). E, no exercício dessa competência, o Conselho Monetário Nacional, por meio da edição de Resoluções do Banco Central do Brasil que se seguiram, destinadas a regulamentar a atividade bancária, expressamente  possibilitou o encerramento do contrato de conta de depósitos, por iniciativa de qualquer das partes contratantes, desde que observada a comunicação prévia.

A dicção do art. 12 da Resolução BACEN⁄CMN n. 2.025⁄1993, com a redação conferida pela Resolução BACEN⁄CMN n. 2.747⁄2000, é clara nesse sentido, in verbis:

Art. 12. Cabe à instituição financeira esclarecer ao depositante acerca das condições exigidas para a rescisão do contrato de conta de depósitos à vista por iniciativa de qualquer das partes, devendo ser incluídas na ficha-proposta as seguintes disposições mínimas: 
I - comunicação prévia, por escrito, da intenção de rescindir o contrato;
II - prazo para adoção das providências relacionadas à rescisão do contrato;
III - devolução, à instituição financeira, das folhas de cheque em poder do correntista, ou de apresentação de declaração, por esse último, de que as inutilizou; 
IV - manutenção de fundos suficientes, por parte do correntista, para o pagamento de compromissos assumidos com a instituição financeira ou decorrentes de disposições legais; 
V - expedição de aviso da instituição financeira ao correntista, admitida a utilização de meio eletrônico, com a data do efetivo encerramento da conta de depósitos à vista.
Parágrafo 1º A instituição financeira deve manter registro da ocorrência relativa ao encerramento da conta de depósitos à vista.
Parágrafo 2º O pedido de encerramento de conta de depósitos deve ser acatado mesmo na hipótese de existência de cheques sustados, revogados ou cancelados por qualquer causa, os quais, se apresentados dentro do prazo de prescrição, deverão ser devolvidos pelos respectivos motivos, mesmo após o encerramento da conta, não eximindo o emitente de suas obrigações legais.
Parágrafo único. Fica estabelecido prazo, até 28 de setembro de 2000, para adequação dos procedimentos relacionados à abertura, manutenção e encerramento de contas de depósitos, em decorrência do disposto neste artigo.
 

Conforme se depreende, o Conselho Monetário Nacional, no estrito exercício de sua competência de regulamentar o funcionamento dos serviços bancários, atribuída pela Lei n. 4.595⁄1964, regente do Sistema Financeiro Nacional, permitiu o encerramento do contrato de conta-corrente, a ambas as partes contratantes, observada a necessidade de, previamente, proceder-se à comunicação do outro.

Nesse ínterim, embora não se aplique à hipótese dos autos a legislação consumerista, porquanto a recorrente não se subsume na qualidade de consumidor, é preciso consignar inexistir qualquer inadequação entre a disposição regulamentar do Banco Central do Brasil, acima referida, com o art. 39, IX, do CDC, que veda, por considerar prática abusiva, a recusa, pelo fornecedor, de prestação de serviços, diretamente a quem se disponha a adquiri-lo mediante pronto pagamento, ressalvados os casos de intermediação regulados em leis especiais.

É, pois, indiscutível a aplicação da lei consumerista às relações jurídicas estabelecidas entre instituições financeiras e seus clientes, que adquirem o serviço bancário na condição de consumidor final (o que não se verifica na hipótese). É inquestionável, de igual modo, a especialidade da Lei n. 4.595⁄1964 (com status de lei complementar, repisa-se), reguladora do Sistema Financeiro Nacional, que, como visto, atribuiu ao Conselho Monetário Nacional a competência, entre outras, para regular o funcionamento dos serviços bancários.

Não se trata de simplesmente conferir prevalência a uma resolução do Banco Central, em detrimento da lei infraconstitucional (no caso, o Código de Defesa do Consumidor), como quer fazer crer a ora insurgente, mas, sim, de bem observar o exato campo de atuação dos atos normativos (em sentido amplo) sob comento, havendo, entre eles, no específico caso dos autos, coexistência harmônica.

Naturalmente, não se exclui do crivo do Poder Judiciário a análise, casuística, de eventual desvirtuamento no encerramento do ajuste, como o inadimplemento dos deveres de informação e de transparência, ou a extinção de uma relação contratual longeva (por exemplo, que perdura há mais de quarenta anos), do que, a toda evidência, não se cuida na hipótese ora vertente.

Todavia, o propósito de obter o reconhecimento judicial da ilicitude, em tesedo encerramento do contrato, devidamente autorizado pelo órgão competente para tanto, evidencia, em si, a improcedência da pretensão posta.

Nessa linha de entendimento, atendo-se à natureza do contrato bancário, notadamente o de conta-corrente, o qual se afigura intuitu personae, bilateral, oneroso, de execução continuada, prorrogando-se no tempo por prazo indeterminado, não se impõe às instituição financeiras a obrigação de contratar ou de manter em vigor específica contratação, a elas não se aplicando o art. 39, II e IX, do Código de Defesa do Consumidor.

Revela-se, pois, de todo incompatível com a natureza do serviço bancário fornecido, que conta com regulamentação específica, impor-se às instituições financeiras o dever legal de contratar, quando delas se exige, para atuação em determinado seguimento do mercado financeiro, profunda análise de aspectos mercadológico e institucional, além da adoção de inúmeras medidas de segurança que lhes demandam o conhecimento do cliente bancário e de reiterada atualização de seu cadastro de clientes, a fim de minorar os riscos próprios da atividade bancária.

Essa compreensão, é certo, é perfilhada, de modo uníssono, pelas Turmas de Direito Privado do Superior Tribunal de Justiça, conforme se extrai dos seguintes precedentes:

Instituição financeira. Conta-corrente. Encerramento da conta-corrente. Art. 39, IX-A, do Código de Defesa do Consumidor.
1. O banco pode encerrar conta-corrente mediante notificação ao correntista, nos termos previstos no contrato, não se aplicando ao caso a vedação do art. 39, IX-A, do Código de Defesa do Consumidor.
2. Recurso especial conhecido e provido.
(REsp 567.587⁄MA, Rel. Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, Terceira Turma, julgado em 28⁄06⁄2004, DJ 11⁄10⁄2004, p. 318) - sem grifo no original.
 
 
AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. DANO. SÚMULA 7. ART. 39 DO CDC. PRECEDENTE.
1. A apreciação de suposta conduta indevida por parte do agravado esbarra na censura da súmula 07⁄STJ, porquanto demanda revolvimento do conjunto fático-probatório, soberanamente delineado nas instâncias ordinárias.
2. Art. 39, II e IX, do CDC. É possível a rescisão do contrato de conta-corrente por parte do banco, desde que o consumidor seja notificado. Precedente.
3. Agravo regimental a que se nega provimento.
(AgRg no Ag 829.628⁄RJ, Rel. Ministro Fernando Gonçalves, Quarta Turma, julgado em 02⁄10⁄2007, DJ 22⁄10⁄2007, p. 292) - sem grifo no original.
 
RECURSO ESPECIAL. CIVIL E CONSUMIDOR. CONTRATO BANCÁRIO. CONTA-CORRENTE E SERVIÇOS RELACIONADOS. RESCISÃO PELA INSTITUIÇÃO FINANCEIRA. ENCERRAMENTO DE CONTA-CORRENTE APÓS NOTIFICAÇÃO PRÉVIA (RESOLUÇÃO BACEN 2.025⁄93, ART. 12). CARÁTER ABUSIVO. NÃO CARACTERIZAÇÃO (CC⁄2002, ART. 473). INEXISTÊNCIA DE OBRIGAÇÃO DE CONTRATAR. NÃO INCIDÊNCIA DO ART. 39, IX, DO CDC. RECURSO PROVIDO.
1. Em regra, nos contratos bancários, envolvendo relações dinâmicas e duráveis, de execução continuada, intuito personae - como nos casos de conta-corrente bancária e de cheque especial -, que exigem da instituição financeira frequentes pesquisa cadastral e análise de riscos, entre outras peculiaridades, não há como se impor, como aos demais fornecedores de produtos e serviços de pronto pagamento pelo consumidor, a obrigação de contratar prevista no inciso IX do art. 39 do CDC.
2. Conforme a Resolução BACEN⁄CMN nº 2.025⁄1993, com a redação dada pela Resolução BACEN⁄CMN nº 2.747⁄2000, podem as partes contratantes rescindir unilateralmente os contratos de conta-corrente e de outros serviços bancários (CC⁄2002, art. 473).
3. Recurso especial provido.
(REsp 1538831⁄DF, Rel. Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 04⁄08⁄2015, DJe 17⁄08⁄2015) - sem grifo no original.

 

Nessa medida, longe de encerrar abusividade, tem-se por legítima, sob o aspecto institucional, a recusa da instituição financeira recorrida em manter o contrato de conta-corrente, utilizado como insumo, no desenvolvimento da atividade empresarial, exercida pela recorrente, de intermediação de compra e venda de moeda virtual, a qual, como já anotado, não conta com nenhuma regulação do Conselho Monetário Nacional. De igual modo, sob o aspecto mercadológico, também se afigura lídima a recusa em manter a contratação, se, conforme sustenta a própria insurgente, sua atividade empresarial se apresenta, no mercado financeiro, como concorrente direta e produz impacto no faturamento da instituição financeira recorrida.

Dessa maneira, o proceder levado a efeito pela instituição financeira não configura exercício abusivo do direito.

Especificamente sobre o entendimento sufragado pelo Superior Tribunal de Justiça, a insurgente aponta, como acórdão paradigma, julgado desta Terceira Turma, que, segundo defende, destoaria da compreensão então adotada por esta Corte de Justiça.

Refere-se ao seguinte julgado:

DIREITO DO CONSUMIDOR. CONTRATO DE CONTA-CORRENTE EM INSTITUIÇÃO FINANCEIRA. ENCERRAMENTO UNILATERAL E IMOTIVADO DA CONTA. IMPOSSIBILIDADE.
1.- Não pode o banco, por simples notificação unilateral imotivada, sem apresentar motivo justo, encerrar conta-corrente antiga de longo tempo, ativa e em que mantida movimentação financeira razoável.
2.- Configurando contrato relacional ou cativo, o contrato de conta-corrente bancária de longo tempo não pode ser encerrado unilateralmente pelo banco, ainda que após notificação, sem motivação razoável, por contrariar o preceituado no art. 39, IX, do Cód. de Defesa do Consumidor.
3.- Condenação do banco à manutenção das conta-correntes dos autores.
4.- Dano moral configurado, visto que atingida a honra dos correntistas, deixando-os em situação vexatória, causadora de padecimento moral indenizável.
5.- Recurso Especial provido.
(REsp 1277762⁄SP, Rel. Ministro Sidnei Beneti, Terceira Turma, julgado em 04⁄06⁄2013, DJe 13⁄08⁄2013) - sem grifo no original.
 

Diversamente do sustentado, o entendimento ali externado não instaurou nenhuma divergência no âmbito desta Corte de Justiça, mas, antes, confirmou o posicionamento então perfilhado segundo o qual é possível a rescisão do contrato de conta-corrente por parte do banco, desde que o consumidor seja notificado.

Como já assinalado, eventual desvirtuamento no encerramento do ajuste, como o inadimplemento dos deveres de informação e de transparência, ou a extinção de uma relação contratual longeva, a ser analisado casuísticamente, não pode ser excluído do crivo do Poder Judiciário.

No referido precedente, da leitura do inteiro teor dos votos dos eminentes Ministros — em especial do voto proferido pela Ministra Nancy Andrigui, ao qual o relator acabou por aderir integralmente —, é possível identificar, como razão de decidir, que o proceder ilícito da instituição financeira estaria no fato de que, após mais de quarenta anos de contratação, não seria possível a rescisão unilateral por parte do banco, sem que se ofertasse ao correntista, um consumidor, uma justificativa plausível para tanto.

Pela relevância, reproduz-se o seguinte excerto do voto proferido pela Ministra Nancy Andrigui, que foi sufragado pelo Relator, conforme dá conta a respectiva certidão de julgamento:

De fato, não é aplicável aos serviços bancários a disposição do art. 39, IX, do CDC. Isso porque a obrigação de contratar aquele que se dispõe a pagar, à vista, o preço anunciado, não pode ser aplicada às obrigações de trato sucessivo, que se prorrogam no tempo, inclusive, por prazo indeterminado. Ao contrário, a prolongação do contrato justifica as preocupações acerca do cadastro e do interesse, de ambas as partes, em se firmar o contrato, concretizando uma opção de segmento de mercado para atuação, bem como uma eficiente gestão de riscos.
Do mesmo modo, não é adequada aos contratos bancários a aplicação do art. 39, II, do CDC, porquanto, diante da expressa vedação do texto legal, não seria possível ao fornecedor recusar atendimento às demandas de consumidores sob nenhum argumento. Todavia, mais uma vez a gestão de risco e a necessidade mercadológica podem justificar a seleção de seguimento em que se atuará, até mesmo como forma de garantir maior eficiência na prestação dos serviços disponibilizados aos consumidores.
Entretanto, deve-se ter em consideração que o rol de práticas abusivas previstas no art. 39 do CDC não esgota todas as hipóteses de abusividade. Ao contrário, trata-se de dispositivo meramente exemplificativo, cujo conteúdo é ampliado pela inserção de cláusulas abertas e fluidas no art. 6º, IV, bem como no próprio caput do art. 39 do CDC – em que se destaca a possibilidade de identificação de outras práticas abusivas.
Assim, a reorganização do direito civil sob o enfoque constitucionalista, implementada paulatinamente pelo CDC e pelo CC⁄02, impõe a conformação da liberdade contratual à boa-fé objetiva e seus deveres anexos, resultando em manifesto alargamento do controle judicial de conteúdo e de finalidade dos contratos, à luz da teoria do abuso de direito. Noutras palavras, a extinção unilateral do contrato por iniciativa do recorrido deve ser analisada no sentido de se verificar sua conformidade, para além de sua licitude, com os limites do direito e sua finalidade.
Nesse passo, a primeira conclusão que ressai é a necessidade de apresentação de justificativa razoável para a perda de interesse no contrato de conta-corrente por parte do banco recorrido, muito embora o art. 12 da Resolução CMN nº 2.025⁄93 admita a rescisão unilateral do contrato por iniciativa de qualquer das partes. É que não se afigura razoável, após mais de quarenta anos de relação contratual entre as partes, que o banco recorrido tenha simplesmente perdido o interesse na manutenção de conta, que vinha sendo regularmente movimentada e que servia de vértice de outras tantas contratações, tais como conta poupança, seguros, cheque especial e outras.
Ademais, as justificativas pelas quais se poderia compreender o desinteresse em uma contratação inicial, como a já mencionada possibilidade de eleição por parte da instituição financeira de segmento mercadológico, não pode, após tão largo prazo de enlace contratual, servir de justificativa à rescisão unilateral. Noutro giro, não há como se compreender como legítimo exercício do direito de não contratar, sem qualquer alegação de alteração na situação fática das partes, que o interesse comercial por tantos anos existenteabruptamente, tenha se perdido.
Dessarte, há uma manifesta quebra desarrazoada da confiança legítima de prorrogação do contrato no tempo, o que enseja sim a caracterização de exercício abusivo do direito.

 

Como se constata, para além da incidência do Código de Defesa do Consumidor — de todo inaplicável à hipótese dos autos —, o julgado da Terceira Turma reconheceu, pontualmente, o desvirtuamento no encerramento unilateral do ajuste — em princípio, absolutamente lícito —, porque se tratava de relação contratual longeva (de mais de quarenta anos), o que ensejaria, naquele caso, necessariamente, a apresentação, por parte da instituição financeira, de justificativas idôneas e plausíveis a respaldar o abrupto proceder.

Aliás, esse esclarecimento se faz presente no julgado da Quarta Turma (REsp 1538831⁄DF, Rel. Ministro Raul Araújo, ocorrido em 04⁄08⁄2015, DJe 17⁄08⁄2015), que se seguiu ao aludido precedente desta Terceira Turma (REsp 1277762⁄SP, Rel. Ministro Sidnei Beneti, julgado em 04⁄06⁄2013, DJe 13⁄08⁄2013), o que deixa evidente inexistir divergência, sobre a questão posta, entre as Turmas que compõem a Segunda Seção do STJ.

No caso dos autos, não se antevê nenhuma particularidade que evidencie desvirtuamento no encerramento do contrato de conta-corrente, antecedido de regular notificação, tal como dispõe a lei de regência.

Em arremate, na esteira dos fundamentos acima delineados, nego provimento ao presente recurso especial.

É o voto

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RECURSO ESPECIAL Nº 1.696.214 - SP (2017⁄0224433-4)
RELATOR : MINISTRO MARCO AURÉLIO BELLIZZE
RECORRENTE : MERCADO BITCOIN SERVICOS DIGITAIS LTDA
ADVOGADOS : MARCELO ALEXANDRE LOPES  - SP160896
    RENATO FERNANDES COUTINHO  - SP286731
    JOSÉ ROBERTO DE CASTRO NEVES  - SP264112A
    PEDRO OTAVIO DE CASTRO BOAVENTURA PACIFICO  - SP389737
RECORRIDO : ITAU UNIBANCO S.A
ADVOGADOS : PAULO ROBERTO JOAQUIM DOS REIS  - SP023134
    ANDRÉA GIOVANA PIOTTO E OUTRO(S) - SP183530
    DANIEL DE SOUZA  - SP150587
    MARIA ELISA PERRONE DOS REIS TOLER  - SP178060
    GRAZIELA ANGELO MARQUES FREIRE  - SP251587
    DENISE LEONARDI DOS REIS  - SP266766
    ABNER ESTEVAN FERNANDES  - SP296347
 
VOTO-VISTA
 
A EXMA. SRA. MINISTRA NANCY ANDRIGHI:
 

Cuida-se de recurso especial interposto por MERCADO BITCOIN SERVIÇOS DIGITAIS LTDA., com fundamento nas alíneas “a” e “c” e do permissivo constitucional, contra acórdão do TJ⁄SP.

Ação: de obrigação de fazer ajuizada pela recorrente em face de ITAÚ UNIBANCO S⁄A, em que pleiteia obstar a resilição do contrato de conta corrente promovida pela recorrida.

Sentença: julgou improcedente o pedido da recorrente.

Acórdão: em apelação interposta pela recorrente, o TJ⁄SP negou provimento ao recurso, em julgamento assim ementado:

Apelação digital. Ação de obrigação de fazer. Incidência do Código de Defesa do Consumidor (Súmula 297 do STJ), que não conduz inexoravelmente à procedência da ação. Apelante que recebeu notificação quanto ao encerramento de sua conta bancária. Possibilidade de rescisão unilateral do contrato de abertura de conta corrente. Notificação providenciada. Não verificada qualquer conduta abusiva por parte do Apelado. Precedentes jurisprudenciais. Sentença de improcedência mantida. Recurso não provido.
 

Recurso especial: alega a violação dos arts. 6º, IV, 39, II e IX, do CDC, e ao art. 187 do CC⁄2002. Sustenta, ainda, a existência de dissídio jurisprudencial.

Admissibilidade: o recurso não foi admitido pelo Tribunal de origem, interpondo a recorrente o agravo em recurso especial, o qual foi negado monocraticamente por este Tribunal (e-STJ fls. 373-376). Na sessão de 15⁄05⁄2018, a Terceira Turma deu provimento ao agravo interno, independentemente da lavratura de acórdão, para posterior julgamento em colegiado.

Julgamento: na sessão de 07⁄08⁄2018, após sustentação oral dos patronos de recorrente e recorrida, o i. Ministro Relator apresentou voto, em que negou provimento ao recurso especial.

Após, solicitei vistas para nova análise da matéria.

É O RELATÓRIO.

 

O propósito recursal consiste em verificar se houve ilegalidade na resilição unilateral, promovida pela recorrida por meio de notificação, recebida em 17⁄06⁄2015, do contrato de conta-corrente, por alegado “desinteresse comercial”.

Nesse sentido, o voto do i. Ministro relator afirma, em apertada síntese, que o encerramento do contrato de conta-corrente seria um direito subjetivo, exercitável por qualquer das partes, em observância ao princípio da autonomia privada, desde que preenchidos os requisitos regulatórios. Tal prerrogativa não seria uma atividade abusiva pela instituição financeira recorrida, mas plenamente legítima, não cabendo ao Poder Judiciário impor uma obrigação de contratar à recorrida, em função dos aspectos institucionais e mercadológicos envolvidos nesse tipo de relação comercial.

1. DA NÃO APLICAÇÃO DO CDC

Inicialmente, importante ressaltar que acompanho o i. Ministro relator com relação à não incidência da legislação consumerista sobre a relação jurídica debatida na hipótese dos autos, pois a recorrente não preenche os requisitos legais para ser considerada como uma consumidora dos serviços financeiros prestados pela recorrida.

Na controvérsia dos autos, é necessária a análise do disposto no art. 2º do CDC, abaixo transcrito:

Art. 2° Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final. Parágrafo único. Equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo.
 

Na lição de José Geraldo Brito Filomeno, o consumidor é aquele partícipe de uma relação de consumo, com todas as características e implicações contidas nessa afirmação, conforme se pode verificar abaixo:

Entendemos que consumidor, abstraídas todas as conotações de ordem filosófica, tão somente econômica, psicológica ou sociológica, e concentrando-nos basicamente na acepção jurídica, vem a ser qualquer pessoa física que, isolada ou coletivamente, contrate para consumo final, em benefício próprio ou de outrem, a aquisição ou a locação de bens, bem como a prestação de serviços. Além disso, há que se equiparar a consumidor a coletividade que, potencialmente, esteja sujeita ou propensa à referida contratação. Caso contrário se deixaria à própria sorte, por exemplo, o público-alvo de campanhas publicitárias enganosas ou abusivas, ou então sujeito ao consumo de produtos ou serviços perigosos ou nocivos à sua saúde ou segurança.
Não há como fugir, todavia, à definição de consumidor como um dos partícipes das relações de consumo, que nada mais são do que relações jurídicas por excelência, mas que devem ser obtemperadas precisamente pela situação de manifesta inferioridade frente ao fornecedor de bens e serviços. Conclui-se, pois, que toda relação de consumo: 1. Envolve basicamente duas partes bem definidas: de um lado o adquirente de um produto ou serviço (consumidor); de outro o fornecedor ou vendedor de um serviço ou produto (produtor⁄fornecedor); 2. Destina-se à satisfação de uma necessidade privada do consumidor; 3. O consumidor, não dispondo, por si só, de controle sobre a produção de bens de consumo ou prestação de serviços que lhe são destinados, arrisca-se a submeter-se ao poder e condições dos produtores daqueles mesmos bens e serviços. (José Geraldo Brito FILOMENO. Manual de direitos do consumidor. São Paulo: Atlas, 14ª ed., 2016, p. 20).
 

Após alguma oscilação, a jurisprudência do STJ atualmente se encontra consolidada no sentido de que a determinação da qualidade de consumidor deve, em regra, ser feita mediante aplicação da teoria finalista, que, numa exegese restritiva do art. 2º do CDC, considera destinatário final tão somente o destinatário fático e econômico do bem ou serviço, seja ele pessoa física ou jurídica. Veja-se, nesse sentido, o julgamento do REsp 1.195.642⁄RJ (Terceira Turma, julgado em 13⁄11⁄2012, DJe 21⁄11⁄2012).

Com isso, fica excluído da proteção do CDC o consumo intermediário, assim entendido como aquele cujo produto retorna para as cadeias de produção e distribuição, compondo o custo (e, portanto, o preço final) de um novo bem ou serviço. Vale dizer, só pode ser considerado consumidor, para fins de tutela pela Lei nº 8.078⁄90, aquele que exaure a função econômica do bem ou serviço, excluindo-o de forma definitiva do mercado de consumo. Em suma, o caráter distintivo da teoria finalista reside no fato de o ato de consumo não visar ao lucro tampouco à integração de uma atividade negocial.

Neste ponto, veja-se que a recorrente atua no segmento de intermediação ou corretagem de criptomoedas e, assim, a atividade de conta-corrente é nada mais que insumo para a realização de seus próprios serviços. Em situações semelhantes, a jurisprudência deste STJ está orientada no sentido de negar a caracterização de consumidor e, como consequência, afastar a aplicação do CDC. A título de exemplo, cumpre mencionar os seguintes julgamentos com esse teor:

A utilização de serviços ou aquisição de produtos com o fim de incremento da atividade produtiva não se caracteriza como relação de consumo, mas de insumo, a afastar as normas protetivas do Código de Defesa do Consumidor. Precedentes de ambas as Turmas da Segunda Seção. (EDcl nos EDcl no CC 146.960⁄SP, SEGUNDA SEÇÃO, DJe 28⁄11⁄2017)
 
Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza, como destinatário final, produto ou serviço oriundo de um fornecedor. Por sua vez, destinatário final, segundo a teoria subjetiva ou finalista, adotada pela Segunda Seção desta Corte Superior, é aquele que ultima a atividade econômica, ou seja, que retira de circulação do mercado o bem ou o serviço para consumi-lo, suprindo uma necessidade ou satisfação própria, não havendo, portanto, a reutilização ou o reingresso dele no processo produtivo. Logo, a relação de consumo (consumidor final) não pode ser confundida com relação de insumo (consumidor intermediário). Inaplicabilidade das regras protetivas do Código de Defesa do Consumidor. (REsp 1599042⁄SP, QUARTA TURMA, DJe 09⁄05⁄2017)
 

Dessa forma, repita-se – pois essa é uma questão relevante para o deslinde desta controvérsia, conforme alegado mais a seguir –, acompanha-se o voto apresentado pelo i. Ministro relator, no sentido de que não se aplica à controvérsia a legislação consumerista.

2. DA LEGISLAÇÃO DE DEFESA DA CONCORRÊNCIA

Nas razões recursais, nos memorais apresentados e no parecer produzido pela recorrente, apresenta-se uma linha de argumentação muito forte e consistente e que, por isso mesmo, atrai a atenção desta Turma julgadora, que é a suposta violação de dispositivos da Lei 12.529⁄2011, que estrutura o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência e dispõe sobre infrações contra a ordem econômica.

De fato, é cediço que o mercado brasileiro de serviços financeiros é altamente concentrado por poucos agentes econômicos, o que facilita atuações concertadas e eventual o abuso de posição dominante, que tem o condão de causar efeitos deletérios para o consumidor e para a economia em geral, com transferências injustas do excedente do consumidor para os bancos e aumento de peso-morto na economia brasileira.

A despeito da existência de autoridade administrativa federal específica, esta Corte Superior, por seu perfilhamento constitucional, possui, sim, competência para a aplicação da mencionada Lei 12.529⁄2011, quando as circunstâncias assim o exigirem. Na hipótese em julgamento, contudo, duas ordens de considerações apresentam empecilhos à linha de defesa posta pelo recorrente, segundo a qual a atuação da recorrida representa uma infração à ordem econômica, a ser reprimida também pelo STJ.

A primeira das considerações é que a análise de infrações à ordem econômica, exige ampla e profunda investigação fática, além de demandar análise econômica acurada de todos os dados produzidos na investigação, para somente então extrair as consequências jurídicas de determinada situação fática.

Toda essa investigação e análise, por óbvio, está ausente nos autos, como também no acórdão recorrido. Veja-se que, conforme a posição do STJ consolidada na Súmula 7⁄STJ, não cabe a esta Corte Superior sequer reexaminar os fatos e provas dos autos, mas interpretá-los à luz do acórdão recorrido.  Dessa forma, com muito mais ênfase, não cabe a este STJ fazer, em sede de julgamento de recurso especial, a produção de provas que pudessem comprovar as alegações do recorrente.

Ademais, quanto à segunda ordem de consideração, não houve qualquer menção à legislação de defesa da concorrência, ainda que indireta, no acórdão recorrido, o que importa na incidência do óbice da Súmula 211⁄STJ. Em conclusão, acompanho o voto do i. Ministro relator, no sentido de que a infração à violação da Lei 12.529⁄2011 não foi devidamente prequestionada no acórdão recorrido, o que impede o conhecimento desse ponto suscitado pela recorrente.

  De qualquer forma, independentemente do acolhimento do recurso, ante a gravidade das alegações trazidas pela recorrente, recomenda-se seja o Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE oficiado, com cópia deste julgamento, para melhor apuração dos fatos descritos como infração à ordem econômica.

3. DA JURISPRUDÊNCIA DO STJ

Neste ponto, cumpre fazer uma importante menção aos julgamentos do STJ invocados pelo i. Ministro relator e que delimitam muito bem o conjunto de julgados desta Corte superior referente ao tema. Pela sua importância, deve-se mencioná-los novamente:

O banco pode encerrar conta-corrente mediante notificação ao correntista, nos termos previstos no contrato, não se aplicando ao caso a vedação do art. 39, IX-A, do Código de Defesa do Consumidor. (REsp 567.587⁄MA, Terceira Turma, DJ 11⁄10⁄2004, p. 318. Grifou-se)
 
Art. 39, II e IX, do CDC. É possível a rescisão do contrato de conta-corrente por parte do banco, desde que o consumidor seja notificado. Precedente. (AgRg no Ag 829.628⁄RJ, Quarta Turma, DJ 22⁄10⁄2007, p. 292. Grifou-se)
 
1. Em regra, nos contratos bancários, envolvendo relações dinâmicas e duráveis, de execução continuada, intuito personae - como nos casos de conta-corrente bancária e de cheque especial -, que exigem da instituição financeira frequentes pesquisa cadastral e análise de riscos, entre outras peculiaridades, não há como se impor, como aos demais fornecedores de produtos e serviços de pronto pagamento pelo consumidor, a obrigação de contratar prevista no inciso IX do art. 39 do CDC. 2. Conforme a Resolução BACEN⁄CMN nº 2.025⁄1993, com a redação dada pela Resolução BACEN⁄CMN nº 2.747⁄2000, podem as partes contratantes rescindir unilateralmente os contratos de conta-corrente e de outros serviços bancários (CC⁄2002, art. 473).  (REsp 1538831⁄DF, Quarta Turma, DJe 17⁄08⁄2015. Grifou-se)
 

Em comum a todos os julgamentos mencionados acima, subjaz a aplicação da legislação de defesa do consumidor, em especial a não aplicação do art. 39, IX, do CDC a essas hipóteses, mesmo havendo a incidência desse código nas relações de consumo existentes entre instituições financeiras e os particulares, o que está estabelecido há muito na jurisprudência do STJ, com a edição da Súmula 297⁄STJ (“O Código de Defesa do Consumidor é aplicável às instituições financeiras”).

Na hipótese em referência, de modo bastante diverso, afigura-se muito claro que a recorrente não se enquadra como um consumidor, nos termos da legislação, pois utiliza-se da conta-corrente como um importante insumo de sua atividade empresarial, que é a corretagem de criptomoedas.

Tal fato traz duas importantes consequências para a análise deste recurso. A primeira consequência, já mencionada acima, é a não incidência do CDC sobre este litígio. A outra consequência consiste em que os julgados desta Corte superior antes mencionados não possuem aplicação direta para a solução deste conflito, pois em todos eles a legislação de referência, que orientou o norte interpretativos dos julgadores, foi a lei de defesa do consumidor, o que não se verifica na hipótese dos autos.

Uma das belezas da atividade jurisdicional é a capacidade de se deparar com o novo, novas situações e novas circunstâncias que constantemente exigem dos magistrados uma reanálise do Direito sobre renovados enfoques. A conflitualidade interpessoal, que não deixa de ser um dos aspectos das relações humanas, é sempre mais criativa que o legislador e que o magistrado.

Este recurso, portanto, não pode ser compreendido como uma simples sequência da jurisprudência dominante do STJ, pois tal afirmação não seria totalmente adequada, pois – mesmo que sejam utilizados como referência interpretativa – os julgamentos anteriores desta Corte a ele não se aplicam de forma perfeita, sem dificuldades. Assim, tem-se diante desta Turma do STJ a oportunidade de fixar entendimento sobre circunstância não expressamente referida nos julgamentos anteriores desta Corte.

Feito esse esclarecimento, para o julgamento deste recurso, não é necessário tecer comentários sobre o julgamento do REsp 1.277.762⁄SP (Terceira Turma, DJe 13⁄08⁄2013), já abordado pelo i. Ministro relator, em razão de suas configurações fáticas muito específicas, como o longo relacionamento estabelecido entre o consumidor e a instituição financeira com quem mantinha contrato de conta-corrente. Tais contornos não se adequam à hipótese, em que há uma empresa que se vale da conta-corrente como um insumo essencial para a sua atividade.

4. DA CORRETAGEM E DAS CRIPTOMOEDAS

Retornando a atenção para a atividade da recorrente, a partir dos autos, tem-se que é empresa que se dedica à corretagem ou intermediação de moedas virtuais ou criptomoedas, conforme descrito pela própria recorrente:

1. A Requerente tem como objeto social a exploração de atividades de corretagem, mediação de negócios e serviços em geral através da Internet. A sua principal atividade consiste em intermediar a comercialização de moeda virtual, denominada Bitcoin, sendo hoje a moeda virtual com maior aceitação no mundo inteiro.
2. Para a realização de compra e venda das moedas virtuais por intermédio da Requerente, os interessados devem necessariamente se cadastrar em seu site (www.mercadobitcoin.com.br) depositando valores na conta bancária da Requerente que servem de crédito para efetuarem as compras de moedas virtuais.
3. Para tanto, a Requerente utiliza a conta corrente contratada com o Itaú, que foi a primeira conta bancária aberta desde o início de suas atividades. (e-STJ fl. 2)

 

Em outras palavras, a recorrente compra e vende criptomoedas e utiliza a conta-corrente contratada junto à recorrida para o desenvolvimento de seus negócios.

A notificação prévia de resilição do contrato de conta-corrente foi recebida pela recorrente no dia 17⁄06⁄2015 e, apesar de a recorrida afirmar não ser concorrente da MERCADO BITCOIN, no segmento de corretagem de criptomoedas, consta que mudou seus planos ao adquirir a XP Investimento, operação que foi aprovada, por maioria e sujeita a condicionantes, pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE em 14⁄03⁄2018 (Ato de Concentração nº 0870.004431⁄2017-16).

Para o correto julgamento do presente recurso, passa-se a abordar as principais características das criptomoedas para, posteriormente, questionar os aspectos relevantes dos contratos de conta-corrente.

5. DO BITCOIN E OUTRAS CRIPTOMOEDAS

Antes de abordar as criptomoedas, cumpre mencionar que, dentro do gênero das moedas digitais, devem ser distinguidas duas espécies. A primeira pode ser denominada de “moedas eletrônicas”, que é a conversão de moeda legal para meios eletrônicos de pagamento, que permitem variados usos em meio virtual.

No Brasil, como em diversos outros países, já existe um arcabouço jurídico para as moedas eletrônicas, instituição por meio da Lei 12.865⁄2013, seguido das Resolução 4.282 e 4.283, do Conselho Monetário Nacional – CMN, e das Circulares 3.681, 3.682 e 3.683, do Banco Central do Brasil – BACEN. Nos termos do art. 6º, VI, da mencionada Lei 12.865⁄2013 “moeda eletrônica” é definida como os “recursos armazenados em dispositivo ou sistema eletrônico que permitem ao usuário final efetuar transação de pagamento”.

A segunda espécie – a qual a hipótese dos autos aborda – diz respeitos às chamadas “criptomoedas”. As criptomoedas nada mais são que uma aplicação inovadora de uma tecnologia potencialmente revolucionária na internet, denominada, à falta de melhor designação em vernáculo, de blockchain, que é um meio importante para resolver o problema de confiança entre os muitos usuários da rede.  Em termos muito genéricos, trata-se de uma base de dados distribuída entre todos os usuários do serviço, certificada e verificável em cada um desses pontos da rede.

Assim, as criptomoedas seriam como um livro-razão, em termos de contabilidade, que registra todas as operações realizadas por meio dela que é imediatamente atualizada em todos seus pontos, sendo por isso virtualmente impossível que seja fraudada ou adulterada, pois – nessa tentativa – não seria reconhecida por todos os outros usuários da criptomoeda.

O Bitcoin surgiu no ano 2009, no auge da crise financeira mundial, em que as instituições financeiras tradicionais foram muito questionadas por seus atos, perdendo em grande medida a confiança do grande público.  As origens do Bitcoin são incertas, pois a identidade de seu criador até hoje não é conhecida. Suas bases estão divulgadas em um artigo, cuja autoria é atribuída a Satoshi NakamotDisponível em https://bitcoin.org/bitcoin.pdf..

Diferentemente das moedas tradicionais, que são emitidas por uma autoridade estatal centralizada – por exemplo, no Brasil é emitido pelo Banco Central – o Bitcoin é criado digitalmente. Esse processo de geração de Bitcoin é comumente referido por “mineração” (mining). Nele, as pessoas que possuam computadores específicos oferecem essa capacidade informática para a resolução de problemas matemáticos – que nada mais são que o reconhecimento de outras operações ocorridas no interior da rede – e, conforme realizam esse processamento, são remuneradas com a criação e recebimento de Bitcoins. Após, a “moeda recebida fica armazenada em carteiras digitais, as quais, por sua vez, podem ser guardadas em computadores, pen drives, ou smartphones” (BALDUCCINI et al. Bitcoins – os lados desta moeda. RT, v. 104, n. 953, mar. 2015).

Assim, as formas de aquisição de Bitcoins ou de outras criptomoedas podem ocorrer de forma originária – por meio de mineração, reunindo-se em grupos que compartilham capacidade computacional para a certificação e resolução de problemas matemáticos – ou de forma derivada, adquirindo-os de terceiros ou de corretoras especializadas, tal como a recorrente na hipótese.

Cuida-se de mais uma inovação tecnológica que tem deixado os governos de todo o mundo em dúvida sobre como melhor regulamentar as criptomoedas. Quanto a isso, é interessante notar que 77% de todas as operações com Bitcoin envolvem conversões com o dólar norte-americano. Apesar dessa proximidade com esta moeda, os Estados Unidos da América não regulamentaram de forma consistente o uso do Bitcoin, sendo que alguns dos Estados o compreendem como uma commodity, ou seja, um produto de qualidade e características uniformes, independentemente de seu produtor ou origem, que tem seu preço uniformemente determinado pela oferta e procura internacional.

O Canadá tem estimulado ativamente a utilização de criptomoedas, inclusive criando sua própria criptomoeda. Há, inclusive, países que, na tentativa de atrair investimentos, estão abrigando de forma muito amigável e tolerante as inovações trazidas pelas criptomoedas e pelo blockchaihttps://www.nytimes.com/2018/02/02/technology/cryptocurrency-puerto-rico.html.. Por sua vez, a República Popular da China, após um curto período de tolerância com o Bitcoin e outras criptomoedas, passou a proibir qualquer tipo de operação financeira que envolvesse esse tipo de moedPONSFORD, Matthew, A Comparative Analysis of Bitcoin and Other Decentralised Virtual Currencies: Legal Regulation in the People's Republic of China, Canada, and the United States (July 24, 2015). Hong Kong Journal of Legal Studies, (2015) 9 HKJLS 29. Disponível em. https:⁄⁄ssrn.com⁄abstract=2554186. De qualquer forma, fato é que não existe qualquer estrutura regulatória que seja minimamente coordenada em âmbito internacional, e é muito pouco provável que qualquer acordo mundial sobre o assunto venha a surgir no futuro próximo.

Trata-se, isso sim, de mais uma novel questão que desafia as convenções jurídicas posta pelo chamado direito cibernético:

O desafio do direito cibernético deve ser de encontrar meios de regular – mesmo que não necessariamente por meio da atuação direta do Estado – qual código pode e qual não pode ser prontamente disseminado e operado na rede generativa da internet e de computadores, para que o sentimento do consumidor ou de pressões regulatórias preexistentes não possam encerrar, de forma trágica, o grande experimento que é a internet de hojeTradução livre de: “Cyberlaws challenge ought to be to find ways of regulating though not necessarily through direct state action which code can and cannot be readily disseminated and run upon the generative grid of Internet and PCs, lest consumer sentiment and preexisting regulatory pressures prematurely and tragically terminate the grand experiment that is the Internet today”. Fonte: Jonathan Zittrain, The Generative Internet. 119 Harv L Rev., 2006.'––
 

Ressalte-se, contudo, que não se deve adotar, neste julgamento, uma postura de simples aceitação às novas tecnologias ou, em outras palavras, de determinismo tecnológico, como se todos os artefatos tecnológicos fossem frutos de verdades e certezas. Ao contrário, são criações humanas e por pessoas humanas são usadas e, como tais, sempre estão envolvidas em contextos políticos, sociais, econômicos e, por consequência, também jurídicos.

Tendo isso em mente, é inegável que as criptomoedas já propiciaram diversas inovações, mas na verdade ainda se está a arranhar a superfície de seu potencial de inovação.

Contudo, também há riscos de diversas naturezas. O principal deles está relacionado ao anonimato propiciado pela utilização do Bitcoin, bem como de outras criptomoedas. Como já apontado por autoridades estadunidenses no ano de 2014:

Porque as operações de bitcoin ponto-a-ponto não requerem a divulgação de informação acerca da identidade, elas conferem aos participantes algum grau de anonimato. Além disso, a comunicação em rede dos computadores pode ser criptografada e anonimizada por meio de programas para mais esconder a identidade das partes nas operaçõeTradução livre de: “Because peer-to-peer bitcoin transactions do not require the disclosure of information about a users identity, they give participants some degree of anonymity. In addition, computer network communication can be encrypted and anonymized by software to further hide the identity of the parties in transactions”. Fonte: United States Government Accountability Office (USGAO), Report to the Committee on Homeland Security and Governmental Affairs, U.S. Senate, Virtual Currencies: Emerging Regulatory, Law Enforcement, and Consumer Protection Challenges (maio de 2014) 10.'.
 

Da mesma forma, a doutrina brasileira aponta que:

A troca da moeda entre os interessados ocorre diretamente entre eles (sem intermediação), por meio de operações digitais de transferência muito simples, com custo muito baixo. Muitas vezes, as partes transacionando não precisam se identificar pessoalmente, bastando que apresentem uns aos outros seus respectivos endereços virtuais, que, por sua vez, não necessariamente estão atrelados ao seu nome ou qualquer outro elemento de identificação real, exceto por um pseudônimo (Balduccini et. al., op. cit.).
 

Mesmo que o anonimato nunca seja totalmente completo, ainda que seja nas operações com criptomoedas, há o persistente temor que os Bitcoins e demais criptomoedas sejam utilizadas em atividades ilícitas, o que, aliás, já ocorreu, como no rumoroso fechamento do site O Caminho da Seda (The Silk Road) e a prisão de seu controlador, em que se constatou o uso de milhões de dólares em Bitcoins para a negociação de atividades criminosas, como a comercialização de drogas ilícitas e a obtenção de documentos falsos, entre outros.

Para encerrar este ponto, cumpre mencionar que existem centenas de criptomoedas disponíveis no mercado, tais como o Ethereum, o Litecoin, Nano, NionioCash, Dash e DogeCoin. Inclusive, até o ex-jogador de futebol Ronaldinho Gaúcho criará sua própria moeda, a RSC (Ronaldinho Soccer CoinDisponível em https://www.infomoney.com.br/mercados/bitcoin/noticia/7517530/ronaldinho-gaucho-vai-lancar-sua-propria-criptomoeda..

6. DA CONTA-CORRENTE COMO INSUMO ESSENCIAL

Neste momento, é necessário comentar brevemente sobre o contrato de conta-corrente bancária, uma espécie contratual do ramo do Direito Bancário, o qual regula as operações de banco e as atividades daqueles que as praticam em caráter profissional, isto é, pelas instituições financeiras.

As instituições financeiras, indicadas no art. 17 da Lei 4.595⁄64, são aquelas que fazem da “negociação de créditos sua atividade principal ou acessória” e que se utilizam de fundos recebidos do público geral, mediante depósito à vista, criando moeda escritural quando da circulação do crédito, conforme a lição de Nelson Abrão (Direito bancário. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 33).

Prosseguindo, a conta-corrente é uma das várias espécies de contratos bancários, os quais são definidos pela doutrina como “aqueles em que uma das partes é, necessariamente, um banco. Isto é, se a função econômica do contrato está relacionada ao exercício da atividade bancária, ou, dizendo o mesmo de outro modo, se o contrato configura ato de coleta, intermediação ou aplicação de recursos financeiros próprios ou de terceiros, então somente uma instituição financeira devidamente autorizada pelo governo poderá praticá-lo. Neste caso, o contrato será definido como bancário” (Fabio Ulhoa COELHO. Manual de direito comercial. São Paulo: Saraiva, 16ª ed., 2005, p. 446).

A conta-corrente bancária é um contrato atípico, sem previsão expressa na legislação, por meio do qual “o banco se obriga a receber valores monetários entregues pelo correntista ou por terceiros e proceder a pagamentos por ordem do mesmo correntista, utilizando-se desses recursos. Guarda semelhança com o depósito bancário, na medida em que o banco tem o dever de restituir os recursos mantidos em conta-corrente ao correntista quando este os solicitar. Mas é um contrato de função econômica mais ampla, porque, através dele, o banco presta um verdadeiro serviço de administração de caixa para o correntista” (Op. cit., p. 450).

Cabem aqui duas importantes notas a respeito desse contrato financeiro: (i) sua relevância para as atividades da recorrente; e (ii) a possibilidade de resilição unilateral dessa relação negocial.

Diferentemente do que foi concluído pelo Primeiro Grau de Jurisdição, corroborado pelo Tribunal de origem, sob a ótica da recorrente, cuida-se de um insumo essencial para suas atividades empresariais. Note-se: a recorrente executa atividades de intermediação com criptomoedas, se ela não dispõe de meios para receber valores monetários de seus clientes, dificulta-se sobremaneira sua própria razão de existir no meio comercial.

Apesar de utilizada, de forma preponderante, para análise de condutas anticoncorrenciais, cabe neste julgamento a menção da teoria da infraestrutura essencial (essential facility) por sua adequação à realidade dos autos. Do ponto de vista teórico, exsurge a infraestrutura essencial, sempre que em uma situação de monopólio – ou oligopólio – “é impossível minimamente competir sem que exista acesso a esse bemSALOMÃO Filho, Calixto. Regulação da atividade econômica. 2 ed. SP: Malheiros, 2008, p. 67..

A teoria da infraestrutura essencial surgiu como forma de garantir acesso a bens essenciais, geralmente controlados de forma monopolística, sem os quais competidores seriam privados de participar do mercado, ou seja, trata-se de uma teoria orientada contra práticas de recusa de venda ou de contratar, bem como contra a discriminação entre adquirentes do bem considerado essenciaZIEBARTH, J.A.B.M.; COUTO. J.A. A doutrina das essential facilities: uma análise da jurisprudência brasileira. RDCom, v. 2, n. 4, jul.dez. 2011..

Como acentua a doutrina a respeito desta teoria, no início, sua aplicação estava muito focada em infraestruturas físicas – pontes, ferrovias, etc. – mas atualmente vem ganhando destaque e estudo a outros bens que podem ser considerados essências para a existência da concorrência, como a propriedade intelectual e, inclusive, sistemas de pagamentoMATTOS, Eduardo da Silva. Concorrência no sistema de pagamentos: condutas anticompetitivas e acesso a câmaras de compensação como essential facility. Revista de Direito Bancário e Mercado de Capitais. vol. 67. ano 18. p. 111-129. São Paulo: Ed. RT, jan.-mar. 2015..

Sobre este quesito, ressalte-se que deve ser considerado como um sistema de pagamento, qualquer mecanismo para as conduções de transações na economiIdem Ib., o que permitiria a inclusão das contas-correntes na categoria. Esses sistemas são imprescindíveis para o desenvolvimento de outras atividades, tais como as executadas pela recorrente. Nesses términos, veja-se a conclusão da doutrina sobre o assunto:

A estruturação do sistema de pagamentos, com destaque para a compensação e liquidação de títulos, pode gerar condições propícias a condutas anticompetitivas, principalmente quanto ao acesso a estruturas fundamentais à concorrência. As experiências nacional e internacional demonstram que o acesso compulsório, por meio da obrigação de contratar que embasa a doutrina das essential facilities, pode ser a alternativa para solucionar esses problemas de cunho concorrencial, visto que há um encaixe claro entre as condições de mercado existentes e os requisitos para aplicação da doutrina.
 
Trata-se de importante passo que precisa ser dado no sentindo de humanizar e democratizar as finanças. Adotar a doutrina das essential facilities dentro do sistema de pagamentos, introduzindo concorrência no setor, é medida adequada e necessária para que a teoria financeira, aplicada ao mercado de capitais, produza efeitos positivos para um grande número de indivíduos (investidores e empreendedores) e que isso auxilie e facilite o financiamento de atividades econômicas, e, consequentemente, o desenvolvimento do país. (MATTOS, Eduardo da Silva. Op. cit.)
 

Neste ponto, conclui-se que as contas-correntes podem ser compreendidas como uma espécie de infraestrutura essencial, sem a qual é impossível a recorrente competir ou mesmo ser economicamente ativa no seu mercado específico.

Não é por outro motivo – permita-se uma analogia para melhor compreensão da sua essencialidade – que as cooperativas de crédito, como forma de contornar as suas dificuldades impostas pelas instituições financeiras tradicionais, relacionadas ao acesso ao sistema de compensação de cheques e outros sistemas de liquidação de pagamentos e transferências interbancárias, pleitearam a autorização de criação de bancos cooperativos.

Como afirmado em outras oportunidades (REsp 1535888⁄MG, Terceira Turma, DJe 26⁄05⁄2017), após solicitações das centrais de cooperativa de crédito, o Banco Central do Brasil, por meio da Resolução 2193⁄95, passou a autorizar os chamados bancos cooperativos. Sobre tais figuras, a doutrina afirma que “eram peças indispensáveis às Cooperativas de Crédito para que estas pudessem acessar os mecanismos operacionais próprios dos bancos comerciais, sem perderem a condição societária particular de ser cooperativa” (Ademar Schardong. Cooperativa de crédito. Porto Alegre: Rigel, 2002. Grifou-se).

De outro lado, ao analisar as características do contrato de conta-corrente, a doutrina também é pacífica no sentido de que sua rescisão pode ocorrer de forma unilateral.

Nesse sentido, Nelson ABRÃO (Direito Bancário. São Paulo: Saraiva, 17ª ed., 2018, p. 203-231) afirma que “Extingue-se o contrato [de conta-corrente]: pelo implemento do prazo ajustado ou verificação da condição resolutória a que estivesse sujeito, por mútuo consenso, haja, ou não, prazo estipulado; por vontade de um dos correntistas, se por prazo indeterminado; pela falência, morte ou interdição de uma das partes” (Grifou-se).

Da mesma forma, Bruno MIRAGEM elenca a possibilidade de resilição de uma das partes, quando contrato é celebrado por tempo indeterminado:

A extinção do contrato de conta corrente pode ocorrer de: a) a expiração do prazo fixado para vigência do contrato; b) distrato, mediante mútuo acordo dos contratantes; c) manifestação unilateral de vontade de um deles na hipótese de o contrato ser por prazo indeterminado; d) falência ou insolvência de um dos correntistas, podendo a instituição financeira habilitar-se ao recebimento do crédito a que faz jus, quando for o caso; e) morte ou incapacidade do correntista, ou extinção da instituição financeira. (Bruno MIRAGEM. Direito bancário. São Paulo: RT, 2013, p. 309)
 

Contudo, ao mencionar as características do contrato de conta corrente, a doutrina também está ciente da discussão acerca das restrições da possibilidade de rescisão unilateral, pela instituição financeira, após denúncia imotivada, nos termos da jurisprudência desta Corte superior.

Pelo exposto até este momento, podemos compreender pela possibilidade de rescisão unilateral, mas que há restrições ao exercício dessa prerrogativa, a depender das circunstâncias da situação em concreto.

Na hipótese dos autos, há uma empresa – que se dedica à corretagem de criptomoedas – e, portanto, não pode ser considerada uma consumidora, nos termos da legislação, cujo uso da conta corrente é infraestrutura essencial para suas atividades.

7. DO ABUSO DE DIREITO: ART. 187 DO CC⁄2002

Afastada a aplicação da legislação de defesa do consumidor, bem como a de infrações à ordem econômica, cumpre aplicar à hipótese o Código Civil, a fim de verificar se o exercício da prerrogativa de resilição do contrato de conta-corrente, mediante notificação desmotivada, configurou um abuso de direito.

Em outras palavras, não se pretende negar a possibilidade da resilição da conta corrente pela instituição, mas apenas se – de acordo com os contornos fáticos da controvérsia – houve extrapolação desse direito, em prejuízo da recorrente.

É fato que o ordenamento jurídico pátrio coíbe o abuso de direito, ou seja, o desvio no exercício do direito, de modo a causar dano a outrem. Dispõe o art. 187 do CC⁄02 que comete ato ilícito “o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.

A doutrina aborda o assunto da seguinte forma:

A terceira conclusão que se tira da redação do art. 187 é a de que o abuso do direito, que não era estranho ao Código de 1916, foi agora erigido a princípio geral, podendo ocorrer em todas as áreas do Direito (obrigações, contratos, propriedade, família), pois a expressão 'titular de um direito' abrange todo e qualquer direito cujos limites foram excedidos. (...) Tem sido alvo de perplexidades o fato de ter o Código de 2002 elevado o abuso de direito ao nível de princípio geral. Alega-se que constitui um verdadeiro perigo para a segurança das relações jurídicas deixar todos os direitos individuais subordinados ao arbítrio judicial; que a certeza do direito será posta em discussão se em linha de princípio tiver o juiz a liberdade de sindicar discricionariamente o mérito das modalidades de exercício do direito subjetivo por parte do titular. A crítica, todavia, não procede, porque o Código - não só neste, mas também em inúmeros outros pontos - aumentou consideravelmente os poderes do juiz. Todos os negócios jurídicos terão, agora, que ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração (art. 113); a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato (art. 421); os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé (art. 422). Em todos esses casos - repita-se - e em muitos outros, a lei estabeleceu como parâmetros de decisão da causa o prudente arbítrio do juiz; os princípios da razoabilidade, da proporcionalidade e da ponderação de valores, cada vez mais utilizados pelo Judiciário até na solução de questões constitucionais, pelo quê não se pode ver exagero algum na norma do art. 187 do Código Civil. (Sergio CAVALIERI FILHO. Programa de Responsabilidade Civil, 6ª ed., São Paulo: Malheiros Editores, 2005, pp. 170-173)
 

Desse modo, o exercício abusivo de direito pressupõe a existência de um direito legítimo, cuja utilização ocorre apenas para prejudicar terceiro, seja parte da relação jurídica originária ou não. Da mesma forma, não é qualquer excesso que caracteriza o abuso, cabendo ao "julgador apontar, em cada caso, os fatos que tornam evidente o abuso do direito, com o que se evitará a temida arbitrariedade, ou o cerceamento do legítimo exercício do direito" (Sérgio Cavalieri Filho, ob. cit., p. 173).

A configuração do abuso do direito é amplamente reconhecida pela jurisprudência do STJ, conforme os julgamentos abaixo demonstram:

Nosso ordenamento coíbe o abuso de direito, ou seja, o desvio no exercício do direito, de modo a causar dano a outrem, nos termos do art. 187 do CC⁄02. Assim, considerando a obrigação assumida, de preservação da vista da paisagem a partir do terreno dos recorrentes, verifica-se que os recorridos exerceram de forma abusiva o seu direito ao plantio de árvores, descumprindo, ainda que indiretamente, o acordo firmado, na medida em que, por via transversa, sujeitaram os recorrentes aos mesmos transtornos causados pelo antigo muro de alvenaria, o qual foi substituído por verdadeiro “muro verde”, que, como antes, impede a vista panorâmica. (REsp 935.474⁄RJ, TERCEIRA TURMA, DJe 16⁄09⁄2008)
 
(...) A questão controvertida neste recurso especial não se restringe à possibilidade⁄impossibilidade do corte no fornecimento de energia elétrica em face de inadimplemento do usuário. O que se discute é a existência ou não de ato ilícito praticado pela concessionária de serviço público, cujo reconhecimento implica a responsabilidade civil de indenizar os transtornos sofridos pela consumidora.
3. Comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos costumes (art. 187 do Código Civil).
4. A recorrente, ao suspender o fornecimento de energia elétrica em razão de um débito de R$ 0,85, não agiu no exercício regular de direito, e sim com flagrante abuso de direito. Aplicação dos princípios da razoabilidade e proporcionalidade.
(REsp 811.690⁄RR, Primeira Turma, DJ 19⁄06⁄2006, p. 123)
 

De fato, até o manejo de habeas corpus, um importante instrumento processual previsto constitucionalmente, foi considerado abusivo, diante das graves consequências suportadas por terceira pessoa, conforme trecho da ementa abaixo:

Controvérsia: dizer se o manejo de habeas corpus, pelo recorrido, com o fito de impedir a interrupção da gestação da primeira recorrente, que tinha sido judicialmente deferida, caracteriza-se como abuso do direito de ação e⁄ou ação passível de gerar responsabilidade civil de sua parte, pelo manejo indevido de tutela de urgência. (...)
Necessidade de perquirir sobre a ilicitude do ato praticado pelo recorrido, buscando, na existência ou não - de amparo legal ao procedimento de interrupção de gestação, na hipótese de ocorrência da síndrome de body stalk e na possibilidade de responsabilização, do recorrido, pelo exercício do direito de ação - dizer da existência do ilícito compensável; Reproduzidas, salvo pela patologia em si, todos efeitos deletérios da anencefalia, hipótese para qual o STF, no julgamento da ADPF 54, afastou a possibilidade de criminalização da interrupção da gestação, também na síndrome de body-stalk, impõe-se dizer que a interrupção da gravidez, nas circunstâncias que experimentou a recorrente, era direito próprio, do qual poderia fazer uso, sem risco de persecução penal posterior e, principalmente, sem possibilidade de interferências de terceiros, porquanto, ubi eadem ratio, ibi eadem legis dispositio. (Onde existe a mesma razão, deve haver a mesma regra de Direito) (...)
(REsp 1467888⁄GO, Terceira Turma, DJe 25⁄10⁄2016)
 

Naquela oportunidade, afirmou-se que caracteriza o abuso de direito quando busca, mesmo que por via estatal, a imposição de seus conceitos e valores a terceiros, retirando deles, a mesma liberdade de ação que vigorosamente defende para si”.

 

8. DA HIPÓTESE DOS AUTOS

Ao encerrar a conta corrente mantida pela recorrente, de forma imotivada e unilateral, a instituição financeira recorrida impôs entraves intransponíveis para o regular exercício de suas atividades comerciais, a qual – por falta de legislação específica e de manifestação das autoridades reguladoras – não apresenta objeto ilícito.

A alegação – elíptica nos autos, mas sustentada da Tribuna no julgamento – segundo a qual o Bitcoin e outras criptomoedas podem ser utilizadas para o cometimento de crimes, em razão do anonimato propiciado, não é suficiente para justificar o ato unilateral do Banco recorrido, porquanto os mesmos fenômenos podem ocorrer com o aporte da moeda corrente, o Real. Como explicado acima, o Bitcoin pode ser utilizado em uma diversidade muito ampla de transações comerciais, e ainda possui muito potencial de expansão.

Limitar seu uso pela possibilidade de realizar atos ilícitos é fechar os olhos à realidade e, ainda, satisfazer-se com uma postura demasiada simplista do Direito e das soluções jurídicas que ainda devem ser construídas para hipóteses semelhantes à do recurso em julgamento.

Ademais, ainda que essa postura – encerrar contas correntes pela possibilidade de atos criminosos – seja aceita como legítima, ela deveria ser aplicada indiscriminadamente, para todos os correntistas, o que não se verifica na realidade.

Veja-se que, sobre isso, não há qualquer menção na imprensa, seja geral ou especializada, que a recorrida e suas congêneres tenham encerrado unilateralmente as contas correntes de grandes empreiteiras e outras empresas flagrantemente envolvidas em esquemas de corrupção e lavagem de dinheiro, como os investigados na Operação Lava-Jato.

De fato, não se poderia exigir do Banco recorrido uma atividade de longa manus do Estado, para que ele decida o que é lícito e o que não está em conformidade com o ordenamento jurídico.  Situação muito diversa seria se houvesse lei ou manifestação das autoridades competentes que proibissem a negociação de criptomoedas em território nacional, o que – de igual modo – ainda não ocorreu. Note-se que o Comunidade nº 31.379, de 16 de novembro de 2017, apenas alerta sobre possíveis riscos em operações com essas moedas, mas não as declara ilegais, nem coíbe de qualquer modo as transações com essas criptomoedas.

Mesmo que o foco da análise jurídica seja o negocial, o bilateral e sinalagmático – e não a análise do funcionamento de todo o mercado – não se pode descurar da essencialidade da conta corrente para as atividades da recorrente. Ademais – como também trazido a esta Corte da tribuna – a atuação conjunta de outros bancos de encerrar as contas-correntes da recorrente apenas ressalta mais o caráter essencial de sua utilização.

Tudo isso permite que a resilição seja coibida como um abuso de direito, pois deixa de ser um exercício de um direito legítimo, mas um ato com fins ilícitos, que é negar a possibilidade de existência econômica à recorrente, sem qualquer fundamento legal.

9. DA CONCLUSÃO

Considerando todo o exposto até aqui, pode-se resumir os argumentos da seguinte forma:

i) Não se aplica a legislação de defesa do consumidor à hipótese, também não é admissível a incidência da lei de defesa da concorrência, por completa ausência de prequestionamento.

ii) Os julgados desta Corte Superior, antes mencionados, não possuem aplicação direta para a solução deste conflito, pois em todos eles a legislação de referência dos julgadores foi a lei de defesa do consumidor, o que não se verifica na hipótese dos autos.

iii) O Bitcoin e as criptomoedas representam um grande desafio e não existe qualquer estrutura regulatória minimamente coordenada em âmbito nacional e internacional, apesar de alguns países estarem experimentando formas de regulação e promoção.

iv) No ordenamento jurídico brasileiro, não há disposição que, de antemão, declare a ilegalidade de operações e da posse de Bitcoin e outras criptomoedas.

v) De um lado, há a possibilidade jurídica de resilição do contrato de conta-corrente. Por outro lado, na hipótese, o contrato de conta-corrente se apresenta como uma infraestrutura essencial para a existência econômica da recorrente.

vi) Em conclusão, ao negar acesso a uma infraestrutura essencial para as atividades da recorrente, com a consciência da imprescindibilidade do uso da conta-corrente para sua existência econômica, o Banco-recorrido extrapola os limites do exercício legítimo do direito de resilir o contrato que mantinha com a recorrente, cometendo um abuso de direito.

Forte nessas razões, rogando todas as vênias ao i. Ministro relator, DOU PROVIMENTO ao recurso especial, com fundamento no art. 255, § 4º, III, do RISTJ, para condenar a recorrida a manter a conta corrente da recorrente ativa e em pleno funcionamento.

Determino a inversão dos ônus sucumbenciais, cabendo à recorrida o pagamento das custas e dos honorários advocatícios, fixados em 20% do valor da causa, nos termos do art. 85, §§ 2º e 11, do CPC⁄2015.

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RECURSO ESPECIAL Nº 1.696.214 - SP (2017⁄0224433-4)
RELATOR : MINISTRO MARCO AURÉLIO BELLIZZE
RECORRENTE : MERCADO BITCOIN SERVICOS DIGITAIS LTDA
ADVOGADOS : MARCELO ALEXANDRE LOPES  - SP160896
    RENATO FERNANDES COUTINHO  - SP286731
    JOSÉ ROBERTO DE CASTRO NEVES  - SP264112A
    PEDRO OTAVIO DE CASTRO BOAVENTURA PACIFICO  - SP389737
RECORRIDO : ITAU UNIBANCO S.A
ADVOGADOS : PAULO ROBERTO JOAQUIM DOS REIS  - SP023134
    ANDRÉA GIOVANA PIOTTO E OUTRO(S) - SP183530
    DANIEL DE SOUZA  - SP150587
    MARIA ELISA PERRONE DOS REIS TOLER  - SP178060
    GRAZIELA ANGELO MARQUES FREIRE  - SP251587
    DENISE LEONARDI DOS REIS  - SP266766
    ABNER ESTEVAN FERNANDES  - SP296347
 
VOTO-VISTA
 

O EXMO. SR. MINISTRO RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA:

Trata-se, na origem, de ação ordinária ajuizada por MERCADO BITCOIN SERVIÇOS DIGITAIS LTDA. visando à condenação do ITAÚ UNIBANCO S.A. a manter em vigor e em pleno funcionamento a conta-corrente de sua titularidade.

Na petição inicial, a autora afirma que tem como principal atividade intermediar a comercialização de moeda virtual denominada "Bitcoin" por meio da rede mundial de computadores (internet), sendo certo que, para a condução desse negócio, detém a titularidade de conta bancária perante a instituição demandada, por intermédio da qual são realizadas todas as suas movimentações financeiras.

A autora relata que, em 17⁄6⁄2015, recebeu notificação a respeito do encerramento de sua conta bancária em razão de simples "desinteresse comercial" da instituição financeira, conduta que, segundo entende, mostra-se abusiva à luz das disposições contidas nos arts. 6º, IV, e 39, II e IX, do Código de Defesa do Consumidor e 187 do Código Civil.

O magistrado de primeiro grau de jurisdição julgou improcedente o pedido formulado na demanda, concluindo pela inaplicabilidade das normas de proteção ao consumidor e pela validade da cláusula que prevê o encerramento do contrato bancário, independentemente de motivação, considerando os princípios da autonomia da vontade e da liberdade contratual.

Não obstante concluir pela incidência das normas consumeristas, a Corte local negou provimento ao subsequente recurso de apelação com fundamento no princípio da liberdade de contratação, acentuando que a instituição financeira pode rescindir o contrato de abertura de crédito em conta-corrente de forma unilateral, desde que o cliente seja cientificado com antecedência mínima.

Já no âmbito desta Superior Corte de Justiça, o Ministro Marco Aurélio Bellizze (Relator) negou provimento ao recurso especial ao fundamento, em síntese, de que "encerramento do contrato de conta-corrente, como corolário da autonomia privada, consiste em um direito subjetivo exercitável por qualquer das partes contratantes, desde que observada a prévia e regular notificação".

Na sequência, inaugurando a divergência, a Ministra Nancy Andrighi deu provimento ao recurso para condenar o ora recorrido (ITAÚ) a manter a conta-corrente ativa e em pleno funcionamento, com a necessária inversão dos ônus sucumbenciais.

Para melhor compreensão da controvérsia, pedi vista dos autos.

Não obstante o primoroso voto proferido pela eminente Ministra Nancy Andrighi, que bem examina a controvérsia sob o prisma da teoria da infraestrutura essencial (essential facility doctrine), não vejo como adentrar esta seara em virtude da forma como a matéria está posta para apreciação deste Órgão Colegiado.

Com efeito, desde a petição inicial, a recorrente funda a sua pretensão somente nos arts. 6º, IV, e 39, II e IX, do Código de Defesa do Consumidor e 187 do Código Civil, fato que se repetiu nas razões da apelação e do recurso especial, a revelar que em momento algum a questão foi analisada pelas instâncias ordinárias sob o enfoque trazido no voto divergente, de modo a satisfazer o requisito do prequestionamento.

Nota-se, a propósito, que as instâncias ordinárias nem sequer levaram em consideração a atividade empresarial exercida pela ora recorrente – intermediação da compra e venda de criptomoedas –, a evidenciar, por mais esse motivo, que não poderíamos avançar na análise dessa específica questão.

Passa-se ao exame da controvérsia, portanto, adstrito ao que foi decidido pelas instâncias ordinárias e nos limites das teses defendidas nas razões do recurso especial.

No que tange à aplicabilidade das normas consumeristas, a jurisprudência desta Corte orienta-se pela teoria finalista ou subjetiva, segundo a qual releva, para efeitos de incidência das normas protetivas, a condição de destinatário final da pessoa física ou jurídica, nos moldes preconizados pela norma de regência – art. 2º do CDC –, que reza: "Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final."

Em regra, portanto, exclui-se da proteção do Código de Defesa do Consumidor o consumo intermediário, ou seja, aquele cujo produto retorna para as cadeias de produção e distribuição, compondo o preço final de bem ou serviço diverso, tal como ocorre na hipótese, em que a conta-corrente que se pretende manter operante é utilizada como implemento da atividade empresarial da autora.

É certo que a jurisprudência desta Corte Superior tem mitigado os rigores da teoria finalista, de modo a estender a incidência das regras consumeristas para a parte que, embora sem deter a condição de destinatária final, apresente-se em situação de vulnerabilidade.

No entanto, aferir, na hipótese, se a autora é parte vulnerável na relação jurídica demandaria o reexame do contexto fático-probatório dos autos, o que é vedado na via recursal eleita, consoante o disposto na Súmula nº 7⁄STJ, sobretudo porque expressamente consignada na sentença de primeiro grau de jurisdição a ausência dessa situação de vulnerabilidade (e-STJ fl. 201).

Ainda que superado esse óbice, não é de hoje que a jurisprudência desta Corte Superior preceitua a inaplicabilidade do art. 39, II e IX, do Código de Defesa do Consumidor – obrigação de contratar – aos contratos bancários, conforme decidido nos seguintes julgados:

"RECURSO ESPECIAL. CIVIL E CONSUMIDOR. CONTRATO BANCÁRIO. CONTA-CORRENTE E SERVIÇOS RELACIONADOS. RESCISÃO PELA INSTITUIÇÃO FINANCEIRA. ENCERRAMENTO DE CONTA-CORRENTE APÓS NOTIFICAÇÃO PRÉVIA (RESOLUÇÃO BACEN 2.025⁄93, ART. 12). CARÁTER ABUSIVO. NÃO CARACTERIZAÇÃO (CC⁄2002, ART. 473). INEXISTÊNCIA DE OBRIGAÇÃO DE CONTRATAR. NÃO INCIDÊNCIA DO ART. 39, IX, DO CDC. RECURSO PROVIDO.
1. Em regra, nos contratos bancários, envolvendo relações dinâmicas e duráveis, de execução continuada, intuito personae - como nos casos de conta-corrente bancária e de cheque especial -, que exigem da instituição financeira frequentes pesquisa cadastral e análise de riscos, entre outras peculiaridades, não há como se impor, como aos demais fornecedores de produtos e serviços de pronto pagamento pelo consumidor, a obrigação de contratar prevista no inciso IX do art. 39 do CDC.
2. Conforme a Resolução BACEN⁄CMN nº 2.025⁄1993, com a redação dada pela Resolução BACEN⁄CMN nº 2.747⁄2000, podem as partes contratantes rescindir unilateralmente os contratos de conta-corrente e de outros serviços bancários (CC⁄2002, art. 473).
3. Recurso especial provido." (REsp 1.538.831⁄DF, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, julgado em 4⁄8⁄2015, DJe 17⁄8⁄2015).
 
"AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. DANO. SÚMULA 7. ART. 39 DO CDC. PRECEDENTE.
1. A apreciação de suposta conduta indevida por parte do agravado esbarra na censura da súmula 07⁄STJ, porquanto demanda revolvimento do conjunto fático-probatório, soberanamente delineado nas instâncias ordinárias.
2. Art. 39, II e IX, do CDC. É possível a rescisão do contrato de conta-corrente por parte do banco, desde que o consumidor seja notificado. Precedente.
3. Agravo regimental a que se nega provimento." (AgRg no Ag 829.628⁄RJ, Rel. Ministro FERNANDO GONÇALVES, QUARTA TURMA, julgado em 2⁄10⁄2007, DJ 22⁄10⁄2007).
 
"INSTITUIÇÃO FINANCEIRA. CONTA-CORRENTE. ENCERRAMENTO DA CONTA-CORRENTE. ART. 39, IX-A, DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR.
1. O banco pode encerrar conta-corrente mediante notificação ao correntista, nos termos previstos no contrato, não se aplicando ao caso a vedação do art. 39, IX-A, do Código de Defesa do Consumidor.
2. Recurso especial conhecido e provido." (REsp 567.587⁄MA, Rel. Ministro CARLOS ALBERTO MENEZES DIREITO, TERCEIRA TURMA, julgado em 28⁄6⁄2004, DJ 11⁄10⁄2004).

 

Sob a ótica do abuso de direito, não se antevê, igualmente, a alegada infringência à norma do art. 187 do Código Civil, segundo o qual "também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes".

Com efeito, nas inúmeras oportunidades nas quais esta Corte Superior se manifestou acerca de possíveis ilegalidades relacionadas com práticas bancárias, sempre procurou pautar o seu entendimento nas normas dos arts. 4º e 9º da Lei nº 4.595⁄1964, recepcionada pela Constituição Federal como lei complementar.

O art. 4º da Lei nº 4.595⁄1964, em seu inciso VIII, prevê a competência do Conselho Monetário Nacional "para regular a constituição, funcionamento e fiscalização dos que exercerem atividades subordinadas a esta lei, bem como a aplicação das penalidades previstas", ao passo que o art. 9º dispõe sobre a competência do Banco Central do Brasil para "cumprir e fazer cumprir as disposições que lhe são atribuídas pela legislação em vigor e as normas expedidas pelo Conselho Monetário Nacional".

No exercício desse mister, o Banco Central do Brasil, após deliberação do Conselho Monetário Nacional, editou a Resolução nº 2.025⁄1993, posteriormente alterada pela Resolução nº 2.747⁄2000, estabelecendo as seguintes diretrizes para a rescisão do contrato de conta de depósitos à vista:

"Art. 12. Cabe à instituição financeira esclarecer ao depositante acerca das condições exigidas para a rescisão do contrato de conta de depósitos à vista por iniciativa de qualquer das partes, devendo ser incluídas na ficha-proposta as seguintes disposições mínimas:
I - comunicação prévia, por escrito, da intenção de rescindir o contrato;
II - prazo para adoção das providências relacionadas à rescisão do contrato;
III - devolução, à instituição financeira, das folhas de cheque em poder do correntista, ou de apresentação de declaração, por esse último, de que as inutilizou;
IV - manutenção de fundos suficientes, por parte do correntista, para o pagamento de compromissos assumidos com a instituição financeira ou decorrentes de disposições legais;
V - expedição de aviso da instituição financeira ao correntista, admitida a utilização de meio eletrônico, com a data do efetivo encerramento da conta de depósitos à vista.
Parágrafo 1º A instituição financeira deve manter registro da ocorrência relativa ao encerramento da conta de depósitos à vista.
Parágrafo 2º O pedido de encerramento de conta de depósitos deve ser acatado mesmo na hipótese de existência de cheques sustados, revogados ou cancelados por qualquer causa, os quais, se apresentados dentro do prazo de prescrição, deverão ser devolvidos pelos respectivos motivos, mesmo após o encerramento da conta, não eximindo o emitente de suas obrigações legais." (grifou-se)

 

Ao que consta dos autos, a instituição financeira demandada cientificou a empresa autora acerca da sua intenção de pôr fim ao relacionamento bancário com ela mantido, conferindo-lhe o prazo de 30 (trinta) dias para comparecimento à agência e formalização dos procedimentos necessários ao encerramento da conta (e-STJ fl. 66).

Confira-se, a propósito, o seguinte trecho da sentença de primeira instância:

"(...) É fato incontroverso que o banco requerido notificou extrajudicialmente o autor, em 08 de junho de 2015, acerca do encerramento da conta bancária mantida por ele, como faz prova o documento de fls. 66⁄69, conferindo-lhe prazo de 30 dias corridos até o encerramento definitivo da conta.
Nesta perspectiva, a resilição do contrato tem substrato contratual e legal, não existindo, por corolário lógico, qualquer ato ilícito" (e-STJ fl. 202).

 

Assim, diante de expressa previsão normativa facultando a rescisão unilateral do contrato de conta de depósitos à vista por iniciativa de qualquer das partes da relação jurídica, não se antevê, a princípio, abuso de direito, sobretudo porque não há outros elementos nos autos suficientes para demonstrar que o exercício do direito, no caso em análise, excedeu manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

Não poderia deixar de demonstrar apreço às preocupações manifestadas pela eminente Ministra Nancy Andrighi, mas entendo que a solução proposta por Sua Excelência excede os limites da via recursal eleita, sem discordar da premente necessidade de análise mais aprofundada do tema por esta Corte Superior, à luz das novas práticas comerciais incorporadas pela sociedade.

Até mesmo a aplicação da teoria da infraestrutura essencial (essential facility doctrine) mostra-se temerária na espécie, não só em virtude da sua maior correlação com o direito concorrencial – do que aqui não se tratou –, mas também em razão da escassez de informações nos autos que nos permita concluir que a conta-corrente mantida em uma instituição financeira específica – no caso o ITAÚ UNIBANCO S.A. – constitui insumo essencial para a continuidade das atividades empresariais da autora, ou seja, que o encerramento de sua conta se apresenta como um óbice intransponível para o regular exercício de suas atividades comerciais, notadamente diante do considerável número de instituições bancárias às quais ela poderia recorrer.

Vale também ressaltar, como admite a própria Ministra Nancy Andrighi em seu ponderado voto, que "a análise de infrações à ordem econômica exige ampla e profunda investigação fática, além de demandar análise econômica acurada de todos os dados produzidos na investigação, para somente então extrair as consequências jurídicas de determinada situação fática".

Em tal perspectiva, eventual constatação de infração à ordem econômica dependeria da análise da conduta das demais instituições financeiras do país nas contratações mantidas com empresas do mesmo ramo de atuação, tarefa que se mostra mais adequada às atribuições do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), sem deixar de reconhecer, por óbvio, a competência do Superior Tribunal de Justiça para decidir sobre a existência de eventual violação dos dispositivos da Lei nº 12.529⁄2011.

Ressalto, por fim, com base apenas em notícias veiculadas na rede mundial de computadores, que fatos semelhantes aos que deram ensejo ao ajuizamento da presente demanda já são de conhecimento do CADE, conforme noticiado encontro que reuniu o Presidente da Autarquia e o Presidente da Associação Brasileira de Criptomoedas e Blockchain (ABCB), realizado no dia 15 de agosto de 2018 (https:⁄⁄www.pressreader.com⁄brazil⁄valor-econ%C3%B4mico⁄20180814⁄282050507900713).

Ante o exposto, pedindo vênia à Ministra Nancy Andrighi, que inaugurou a divergência, acompanho a proposta de voto do Relator, Ministro Marco Aurélio Bellizze, para negar provimento ao recurso especial.

É o voto